CRENÇAS E REALIDADE SOBRE RECUPERAÇÃO DE EMPRESA
Este texto tratará de algumas questões relativas à reestruturação da empresa em crise, tendo como base a Lei 11.101/05.
Crenças e realidade sobre recuperação do agente econômico são termos díspares, porquanto muito se comenta, não raro de forma incorreta [em especial no mundo virtual, digital].
Nem sempre há o indispensável conhecimento efetivo, técnico, aprofundado a respeito dos meios jurídico-econômicos que podem ser empregados visando o soerguimento da atividade econômica.
De fato, o mundo virtual proporcionou grandes e profundas alterações na sociedade organizada, gerando, inclusive, um universo de crenças muito distantes da realidade.
Impera, na internet, a informação [a era da informação], nem sempre em estrita harmonia com a realidade.
Trata-se, pois, de indisfarçável arena, onde opiniões diversas são apresentas; os mitos e as crenças se avolumam. A prudência determina que haja atenção e prudência acerca do que se lê no mundo virtual.
É importante refletir sobre o que se lê, insiste-se; a filtragem sobre os escritos se faz necessária; a interpretação do texto é, indispensável; o senso crítico, imprescindível.
Como bem acentuou Umberto Eco, em aguda entrevista, a internet não seleciona a informação.
Prudência e cautela, a fim de que se possa formar entendimento sobre o tema analisado. A Lei 11.101/05 é complexa, com vários detalhes.
Há crenças – convicção, irremovível opinião formada, não raro sem fundo racional – sobre vários aspectos da Lei 11.101/05.
O jurista Frederico A. M. Simionato foi fez na seguinte frase:
Aos iniciantes na matéria falimentar quero advertir que o direito falimentar é como navegar em alto-mar, sem escoras, e que o vento salvará apenas aqueles que souberem que a sorte é a rainha da esperança, que o naufrágio iminente não deixa de ser a última saída e que ‘invidia festos dias non agit’
(Tratado de Direito Falimentar. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2008, p. 5. Destaques no original. A frase em é de Francis Bacon [ensaio sobre a inveja]. Tradução livre: “a inveja não guarda feriados)
Há, porém, realidade mais palpitante a respeito da Lei 11.101/05, nem sempre conhecida pelos que estão mergulhados em crise momentânea.
Uma das crenças mais comuns é a de que o regime recuperatório acaba em falência. Algumas palavras serão escritas a respeito.
O PROCESSO DE RECUPERAÇÃO E A FALÊNCIA
Conforme exposto, existe a crença na mente de muitos de que o processo de reestruturação quase sempre deságua na falência do agente econômico.
A convolação (transformar a recuperação em falência), sem dúvida, pode ocorrer no curso do processo. No curso! Não há dúvida a respeito.
Entretanto, uma das hipóteses previstas no art. 73 da Lei 11.101/05 deve ser verificada no caso concreto. O tema “processo de recuperação e falência” precisa ser examinado com muita cautela.
O magistrado, ao ter o primeiro contato com a ação de recuperação judicial não poderá imediatamente decretar a falência do agente econômico mergulhado em crise, justamente porque esta hipótese inexiste no art. 73.
A abertura judicial da falência somente pode eventualmente ocorrer após ser determinado o processamento da recuperação judicial (art. 52, Lei 11.101/05).
Antes de importante decisão judicial, não.
Seria, em outros termos, impor o remédio mais amargo ao paciente, remédio esse que não foi requerido em sua petição inicial. Requereu-se, na ação, apenas fôlego, visando a tentativa de reestruturação da empresa.
Não se requereu a abertura da falência.
Antes disso, o máximo que poderá ocorrer é o indeferimento da petição inicial, mas nunca a abertura judicial da falência.
A LEI VISA A TENTATIVA DE REESTRUTURAÇÃO
O Brasil manteve em seu ordenamento jurídico, por mais de 60 (sessenta) anos, uma lei ultrapassada, que não auxiliava no soerguimento do agente econômico.
O pagamento de dívidas quirografárias, em duas parcelas em 24 meses era algo totalmente incompatível com a realidade empresarial. O Decreto-Lei 7.661/45 era de outro tempo, do tempo das pequenas atividades, do comerciante.
Aliás, o aludido decreto ainda tratava da figura do comerciante – atrelada à Teoria dos Atos de Comércio (sistema francês), quando, na década de 1940 do século passado, na Itália já se falava em empresa, como atividade econômica organizada.
O Decreto-Lei 7.661/45 já não mais cumpria sua finalidade. O número de concordatas preventivas era elevado e muitas pessoas jurídicas eram retiradas do mercado, simplesmente porque não depositavam as parcelas às quais se comprometeram.
A partir de 2005, o Brasil, na linha de legislações avançadas, de ponta, promoveu avanços significativos. Primeiramente são colocadas em prática medidas que visam o saneamento e reestruturação empresarial, visando sua mantença no mercado competitivo.
A lei visa a tentativa de reestruturação da empresa, concedendo mecanismos jurídico-econômicos aos que se veem mergulhados em crise econômico-financeira. Tenta-se recuperar a empresa.
Sobre esse tema, tive a oportunidade de escrever na minha Dissertação de Mestrado em Direito, transformada na obra intitulada Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa, pela LTr Editora (2009).
O art. 47 da Lei 11.101/05 traz o norte a ser seguido; nele há importantes princípios, que hão de ser observados.
Busca-se, em resumo: a tentativa de superação da crise momentânea; a mantença da atividade econômica e, por conseguinte, do emprego; a preservação da empresa no mercado, a fim de que cumpra sua função social, gerando riquezas e contribuindo para o desenvolvimento da nação.
O AFASTAMENTO DOS TITULARES DA PESSOA JURÍDICA
Com a abertura judicial da falência, e a consequente retirada do agente econômico do mercado, seus titulares são afastados. Há a imediata formação da massa falida, desapossamento do patrimônio, arrecadação, avaliação e venda judicial de ativos, bem como outros procedimentos.
Em decorrência da sentença que decreta a falência, os titulares da pessoa jurídica perdem o direito de administrar os ativos ou exteriorizar atos de disposição.
É a regra do art. 103 da Lei 11.101/05.
Entretanto, na recuperação judicial, via de regra, os titulares da empresa são mantidos nos cargos, a fim de que deem prosseguimento à atividade econômica.
Porém, pode ocorrer determinada situação que determine o afastamento dos titulares da pessoa jurídica.
O art. 64 da Lei 11.101/05 contém hipóteses taxativas, que, ocorrendo em situação concreta, determinam o afastamento/destituição do gestor empresarial.
A respeito, tivemos oportunidade de escrever obra específica: Destituição do devedor e remoção dos administradores de empresas em recuperação judicial, publicada pela Editora Quartier Latin, 2023, sendo autores Carlos H. Abrão, Lucilaine B .L. C. Martins e Carlos Roberto Claro.
O afastamento dos titulares da pessoa jurídica pode ocorrer se presente, no caso concreto, uma das hipóteses previstas em lei.
Por outro lado, em sendo determinada a realização de perícia prévia – diagnóstico preliminar (art. 51-A da Lei 11.101/05) -, detectando-se atos prejudiciais ao agente econômico, credores ou terceiros, pode ser determinado o regular processamento da recuperação judicial e concomitante afastamento dos gestores, decisão essa justificada e fundamentada.
Aliás, na obra publicada em 2009 [Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa] escrevi a respeito da possiblidade de o magistrado se valer de pessoa capacitada, a fim de verificar se o autor da ação de recuperação judicial cumpriu, de fato todos os requisitos legais. A obra foi publicada em 2009 e a Lei 11.101/05 sofreu alteração apenas em 2020.
Quando da alteração da lei, no ano de 2020, perdeu-se oportunidade de dar nova redação ao art. 64, inserindo-se outras hipóteses que autorizem o afastamento e destituição do administrador.
A lei poderia ser mais abrangente, neste aspecto.
Em resumo, a regra é de que os administradores permaneçam à frente da atividade econômica durante o processamento da recuperação judicial. O afastamento é exceção.
O SINAL DE ALERTA E O AGIR DOS ADMINSTRADORES
Ao primeiro sinal de alerta, impõe-se o agir dos administradores da pessoa jurídica. Não cabe aguardar o aprofundamento da crise econômico-financeira e só depois buscar ajuda de assessoria técnica especializada, visando tomar medidas para resolver o problema.
O não agir metodologicamente correto pode acarretar a instauração da crise patrimonial, essa sim de caráter irreversível.
Não raro, os titulares do agente econômico nem sempre admitem a crise e acreditam que podem continuar gerindo a pessoa jurídica regularmente.
Por outro lado, admitindo a crise instalada, sentem-se inseguros e nem sempre têm visão clara a respeito do rumo a seguir.
Conforme dito, sinal de crise significa oportunidade para agir de forma rápida e metódica, visando o efetivo saneamento empresarial.
A demora na implementação de providências imprescindíveis pode, aí sim, ocasionar a crise patrimonial irreversível, conforme alinhado.
Em outros termos, para a crise patrimonial o caminho é a abertura judicial da falência e não o regime recuperatório judicial ou extrajudicial.
Nesta situação, a recuperação não será capaz de manter a empresa no mercado.
Ao perceber o primeiro sinal de crise e ligado o sinal de alerta, os gestores empresariais terão a percepção de que há possibilidade de saneamento e reestruturação, mantendo-se a atividade econômica organizada, agora sob a tutela da Lei 11.101/05.
Definindo-se que o caminho é se valer da Lei 11.101/05, a ação de recuperação judicial há de ser imediatamente distribuída, perante o Juízo competente, cumprindo-se todos os requisitos objetivos e objetivos, preenchidas todas as formalidades legais.
Há de imperar a boa-fé objetiva no agir, sempre.