CRISE E SUPERENDIVIDAMENTO DA PESSOA NATURAL
Neste primeiro texto de 2024, gostaria de tratar, brevemente, de questão importante para as pessoas naturais [consumidoras] que se encontram em crise financeira.
O novo ano – como sempre – traz perspectivas e metas a serem alcançadas.
Por outro lado, os boletos bancários, os carnês de tributos (IPVA, IPTU etc.), bem como outras dívidas se avizinham no primeiro mês de 2024. É fato que se repete.
Faz-se necessário o planejamento orçamentário. Muitos brasileiros, porém, não podem levar a efeito tal planejamento.
Há famílias brasileiras em crise financeira, inadimplentes, com superendividamento.
O problema deve ser enfrentado, inclusive visando a erradicar a pobreza e a marginalização (CF, art. 3º, inc. III).
O consumo compulsivo – sem limites -, o efetivo descontrole financeiro, a falta de planejamento orçamentário [gastos excessivos no cartão de crédito, com parcelas a perder de vistas], a necessidade de se manter determinado status social, a ostentação, e a própria “sociedade do espetáculo” [aqui relembro Guy Debord, em sua festejada obra] não serão tratados neste espaço.
Prosseguindo, a Lei 8.078/90, quiçá considerando o elevado grau de inadimplência, foi alterada em julho/21, a fim de ocorra o tratamento das dívidas de consumo, envolvendo pessoas naturais. É deveras positiva a alteração legal.
Afinal, o Direito se renova diariamente, acompanha os passos da sociedade, de modo que o avanço da legislação é imprescindível, ainda mais em tempos de crise financeira de famílias brasileiras.
Algumas linhas serão escritas a respeito, mais adiante.
A partir de 03/01/2024, os juros cobrados em dívidas no cartão de crédito não poderão ultrapassar 100% (cem por cento) do valor principal do débito. A Lei 14.690/23 e a Resolução n. 5.112 [de 21/12/23] do BACEN tratam do tema.
Aqui também não há espaço para escrever a respeito da questão relativa ao limite de juros do cartão de crédito – porquanto o tema deste pequeno texto é outro – sendo de ressaltar, porém, que poderá haver impacto no mercado de crédito (redução de empréstimos e concessão de cartões, por exemplo).
A PESSOA NATURAL E A CRISE
Com a edição do Código de Processo Civil de 2015 (Lei 13.105/15), por mera opção legislativa, foi mantida no sistema jurídico a execução por quantia certa contra devedor insolvente (CPC/1973, Lei 5.869/73, art. 748 e seguintes).
Assim dispõe a regra do art. 1.052 da Lei 13.105/15.
Dito de outro modo, a insolvência civil [crise da pessoa natural] continua sendo tratada pelo CPC de 1973.
Perdeu-se grande oportunidade de tratar da insolvência da pessoa humana, aprimorando-se a legislação, na linha de outros sistemas normativos.
A pessoa natural, em crise, se pode valer do instituto da insolvência civil, ao passo que a pessoa jurídica – na mesma situação de desequilíbrio -, tem ao seu alcance a Lei 11.101/05, para buscar o soerguimento e mantença no mercado.
Há outras medidas extrajudiciais que podem ser utilizadas, visando a repactuação de dívidas dos agentes econômicos.
Com a alteração do Código de Defesa do Consumidor, a pessoa natural em crise, imbuída de [presumível] boa-fé objetiva, em estado de superendividamento, qual diz o art. 54-A, §1º, da lei em exame, poderá buscar o processo de repactuação global das dívidas com seus credores (observem-se: art. 54-A, §§1º, 2º e 3º, art. 104-A, §1º).
Não obstante o fato de o CPC manter as regras de 1973 – o Brasil, conforme exposto, poderia ter legislação específica a respeito da crise da pessoa natural e meios de resolução -, houve, de fato, grande avanço, no que diz à [tentativa de] superação da crise do consumidor, com a inclusão dos dispositivos na Lei 8.078/90.
Apenas para finalizar este tópico, consabido que muitas famílias brasileiras têm inadimplência relativa ao cartão de crédito, mas não apenas. Há outras dívidas bancárias, fiscais etc., que fazem parte do problema global das pessoas naturais.
A PREVENÇÃO, O SUPERENDIVIDAMENTO E O TRATAMENTO
A Lei 8.078/90, a partir do art. 54-A, traz disposições a respeito da prevenção e do tratamento do superendividameto da pessoa natural.
Estabelece que superendividamento é a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.
A lei, salvo melhor entendimento, não precisava explicitar a “boa-fé” objetiva, porquanto a probidade, o comportamento ético e a boa-fé são (ou deveriam ser) presumíveis.
O “mínimo existencial” é conceito a ser verificado no caso concreto.
A sobrevivência da pessoa humana não pode ser comprometida; o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana há de ser colocado em degrau superior.
Observem-se os artigos 1º, inc. III, e 3º, inc. III, da Constituição Federal.
As dívidas [atuais e futuras] que podem ser repactuadas hão de ser decorrentes de relação de consumo, incluídas operações de credito, compras a prazo e serviços de prestação continuada.
São excluídas, por exemplo, as dívidas tributárias fiscais e parafiscais, bem como dívidas oriundas de contratos de crédito com garantia real, de financiamentos imobiliários e de crédito rural, conforme art. 104-A, §1º da lei.
Entrementes, estas dívidas devem ser consideradas para fins de aferição da efetiva situação do devedor, que o impossibilita de pagar as dívidas em sua totalidade.
Presume-se, conforme dito, a boa-fé objetiva da pessoa natural, ao manifestar a impossibilidade de cumprir, a tempo e modo correto, as obrigações livremente assumidas.
Para aqueles que se não comportam conforme a lei, não há renegociação de dívidas.
Assim o diz o art. 54-A, §3º: O disposto neste Capítulo não se aplica ao consumidor cujas dívidas tenham sido contraídas mediante fraude ou má-fé, sejam oriundas de contratos celebrados dolosamente com o propósito de não realizar o pagamento.
No finaldeste mesmo parágrafo terceiro consta que inaplicável a lei aos contratos que decorram da aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor.
Aqui, salvo engano, há conceito jurídico indeterminado [inexiste conceito preciso]. Só o caso concreto esclarecerá o que seria produto e serviço de luxo de alto valor.
A TENTATIVA DE CONCILIAÇÃO ENTRE DEVEDOR E CREDORES
A Lei 8.078/90, a partir do art. 104-A, apresenta disposições acerca da tentativa conciliação e processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes (art. 104-B).
Em linhas gerais, no que se refere à tentativa de conciliação entre devedor e credores, a requerimento do inadimplente, pessoa natural, poderá o magistrado instaurar o processo de repactuação de dívidas.
À audiência de conciliação, presidida pelo magistrado ou por conciliador credenciado perante o juízo, deverão comparecer os credores adstritos às relações de consumo [o procurador deverá ter poderes especiais e plenos para fins de transação], bem como o consumidor.
A proposta de plano de pagamento deverá ser anexada pelo devedor no prazo de 5 (cinco) dias, esclarecendo as garantias apresentadas e a forma de pagamento. Estabelece a lei que há de ser preservado o mínimo existencial do consumidor.
O não comparecimento injustiçado de qualquer credor, ou de seu procurador,
acarretará a suspensão da exigibilidade do débito e a interrupção dos encargos da mora, bem como a sujeição compulsória ao plano de pagamento da dívida se o montante devido ao credor ausente for certo e conhecido pelo consumidor, devendo o pagamento a esse credor ser estipulado para ocorrer apenas após o pagamento aos credores presentes à audiência conciliatória [art. 104-A, §2º]
Em havendo composição com qualquer credor, a sentença judicial homologatória descrever os termos do plano de pagamento e servirá de titulo executivo judicial, fazendo coisa julgada [o que deve constar do plano: art. 104-A, §4º].
Estabelece o art. 104-B:
Se não houver êxito na conciliação em relação a quaisquer credores, o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo porventura celebrado.
§ 1º Serão considerados no processo por superendividamento, se for o caso, os documentos e as informações prestadas em audiência
§ 2º No prazo de 15 (quinze) dias, os credores citados juntarão documentos e as razões da negativa de aceder ao plano voluntário ou de renegociar.
§ 3º O juiz poderá nomear administrador, desde que isso não onere as partes, o qual, no prazo de até 30 (trinta) dias, após cumpridas as diligências eventualmente necessárias, apresentará plano de pagamento que contemple medidas de temporização ou de atenuação dos encargos
§ 4º O plano judicial compulsório assegurará aos credores, no mínimo, o valor do principal devido, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, e preverá a liquidação total da dívida, após a quitação do plano de pagamento consensual previsto no art. 104-A deste Código, em, no máximo, 5 (cinco) anos, sendo que a primeira parcela será devida no prazo máximo de 180 (cento e oitenta) dias, contado de sua homologação judicial, e o restante do saldo será devido em parcelas mensais iguais e sucessivas.
Por fim, consta do art. 104-C:
Compete concorrente e facultativamente aos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor a fase conciliatória e preventiva do processo de repactuação de dívidas, nos moldes do art. 104-A deste Código, no que couber, com possibilidade de o processo ser regulado por convênios específicos celebrados entre os referidos órgãos e as instituições credoras ou suas associações.
§ 1º Em caso de conciliação administrativa para prevenir o superendividamento do consumidor pessoa natural, os órgãos públicos poderão promover, nas reclamações individuais, audiência global de conciliação com todos os credores e, em todos os casos, facilitar a elaboração de plano de pagamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, sob a supervisão desses órgãos, sem prejuízo das demais atividades de reeducação financeira cabíveis.
§ 2º O acordo firmado perante os órgãos públicos de defesa do consumidor, em caso de superendividamento do consumidor pessoa natural, incluirá a data a partir da qual será providenciada a exclusão do consumidor de bancos de dados e de cadastros de inadimplentes, bem como o condicionamento de seus efeitos à abstenção, pelo consumidor, de condutas que importem no agravamento de sua situação de superendividamento, especialmente a de contrair novas dívidas.
A repactuação de dívidas, por intermédio de plano de pagamento, é medida salutar que visa:
- Pagamento dos débitos oriundos da relação de consumo;
- Observância do princípio da dignidade da pessoa humana e preservação do mínimo existência [CDC, art. 6º, inc. XII];
- Cooperação mútua entre credores e consumidor, visando a convergência e solução das pendências.