Falência, Sócios E Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana
O tema deste texto é muito comum e dúvidas surgem a respeito de como ficam as responsabilidades de sócios e acionistas quando a pessoa jurídica se submete a regime falimentar.
A falência, sócios e o princípio da dignidade da pessoa humana devem ser examinados com profundidade, na medida em que a retirada de pessoa jurídica do mercado não implica necessariamente a falência de seus sócios ou acionistas.
A PESSOA FÍSICA E A INSOLVÊNCIA
Inexiste falência de pessoa física no Brasil, mas sim, a insolvência civil, prevista no Código de Processo Civil de 1973, a partir do art. 748].
O atual Código de Processo Civil, em seu art. 1.052, estabelece que permanecem em vigor as disposições de 1973, no tocante às execuções contra devedor insolvente. Até que seja editada lei específica, permanecem as regras de 1973.
Cabe destacar que a Lei 14.181/2021 alterou o Código de Defesa do Consumidor [Lei 8.078/1990], prevendo questões a respeito do superendividamento de pessoa física [de boa-fé], com relação a dívidas decorrentes de consumo. As regras estão a partir do art. 54-A, da Lei 14.181/2021.
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
Estabelece o art. 82-A da Lei 11.101/05 que é vedada a extensão da falência e de seus efeitos aos sócios de responsabilidade limitada [bem como a outros tipos societários], aos controladores e aos administradores do agente econômico.
É permitida a desconsideração da personalidade jurídica [Código de Processo Civil, art. 133].
Havendo a procedência do pedido, os sócios ou acionistas da pessoa jurídica poderão ser responsabilizados, mas não entram em falência, por assim dizer.
A responsabilização nada tem a ver com extensão dos efeitos da falência aos sócios e acionistas [ que podem também ser agentes econômicos].
Observa-se a regra do art. 790, inc. II, do Código de Processo Civil.
CONSTRIÇÃO DE BENS DOS SÓCIOS
Sobre o tema, escreve Nelson Abrão: Não cumprindo o devedor, espontaneamente, a obrigação, cria-se o poder coativo do credor sobre o seu patrimônio [Da ação revocatória. 2ª edição. São Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1997, p. 15]. Tema importante diz respeito a constrição de bens dos sócios, quando a penhora recai sobre bem de família [Lei 8.009/1990].
Consta do art. 3º da Lei 8.009/1990 que a impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, dentre outras hipóteses ali elencadas. Os incisos deste artigo apresentam as exceções à impenhorabilidade de bem.
Mantém-se a impenhorabilidade sobre o imóvel residencial [constrição sobre bens dos sócios], mesmo que haja incidente de desconsideração da personalidade jurídica acolhido pelo juiz.
Mesmo considerando a relevância do direito patrimonial dos credores em processo falimentar, prevalece a segurança da família [direito social à moradia e vida digna, conforme art. 6º da Constituição Federal.
Também se coloca em degrau superior o princípio da dignidade da pessoa humana [art; 1o, inc. III, art. 170, caput e 226 da Constituição Federal].
Escrevi numa obra o seguinte: Conforme Immanuel Kant (1980 apud SARLET, 2006b), quando a coisa tem preço, outro pode ser equivalente, mas quando não se pode mensurar, quando a coisa está acima de todo e qualquer preço, aí estar-se-á inexoravelmente diante do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual se encontra num degrau bem superior em relação aos demais princípios constantes do catálogo constitucional brasileiro [CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr Editora, 2009, p. 33].
A JURISPRUDÊNCIA SOBRE A MATÉRIA
Há jurisprudência sobre a matéria aqui examinada – impenhorabilidade de bem de família.
O Tribunal de Justiça de São Paulo assim decidiu:
FALÊNCIA. Sócios da falida que entregaram em caução, na fase de concordata preventiva, imóvel que serve de residência à família. Decisão que indefere pedido de reconhecimento da impenhorabilidade do bem de família. Indeferimento reformado. Lei 8009/90. Caso concreto que não se amolda perfeitamente à exceção prevista no inciso V do art. 3º.
Interpretação restritiva da regra de exceção. Impossibilidade de renúncia. Matéria de ordem pública, cognoscível a qualquer tempo e grau de jurisdição. Direito patrimonial dos credores da falida que não supera o direito constitucional dos sócios à moradia e à dignidade. Caução, por fim, que foi prestada apenas pelo sócio-varão, sem outorga uxória.
Recurso provido
[TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento nº 2177597-34.2014.8.26.0000, rel. Des. Teixeira Leite, julg. 10/06/2015]
Consta do v. acórdão:
A natureza do instituto impede, também, a renúncia, não devendo o interesse patrimonial dos credores da falida superar os direitos à moradia e à dignidade da pessoa humana, garantidos constitucionalmente aos agravantes, seus sócios]
Outro julgado:
Agravo Falência Arrecadação de bem imóvel de sócio – Alegação de impenhorabilidade (Lei 8.009/90) Mandado de constatação em que se certificou que a chácara não teria sinais de habitação diária, conforme informação obtida pelo oficial de justiça de vizinho que é desafeto do agravante Necessidade de realização de outra diligência para constatação da efetiva caracterização de bem de família Provimento, em parte, para anular a decisão e determinar que se realize outra constatação pelo oficial de justiça, antes de se decidir a respeito da liberação do imóvel dos efeitos da falência
[TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial Agravo de Instrumento n. 2022124-21.2015.8.26.0000, relator Des. Ênio Santarelli Zuliani, julg. 10/06/2015]
Assim decidiu a 19ª Câmara Cível do e. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:
AGRAVO INTERNO CONTRA DECISÃO ASSIM EMENTADA: AGRAVO. FALÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PRESENÇA DOS REQUISITOS DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. ABUSO DA PERSONALIDADE E DESVIRTUAMENTO DA AUTONOMIA PATRIMONIAL. PRECEDENTES DO STJ. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica tem por escopo alcançar o patrimônio dos sócios-administradores que se utilizam da autonomia patrimonial da pessoa jurídica para fins ilícitos, abusivos ou fraudulentos, nos termos do que dispõe o art. 50 do Código Civil: comprovação do abuso da personalidade jurídica mediante desvio de finalidade ou de confusão patrimonial, em detrimento do interesse da própria sociedade e/ou com prejuízos a terceiros. Tal incidente requer cautela e zelo para o seu deferimento, havendo necessidade de que seja apoiada em fatos concretos que demonstrem o desvio da finalidade social, com proveito ilícito dos sócios. No caso, a fundamentação para a desconsideração da pessoa jurídica está ancorada em abuso da personalidade e no desvirtuamento da autonomia patrimonial de acordo com as provas e os documentos carreados ao processo, indicativos de que houve transferência do patrimônio da falida para empresas sucessoras, dentro do período suspeito, o que sugere, ao menos em tese, o intuito de prejudicar os credores. De outro lado, o passivo da falida já atingiu o montante de 17 milhões de reais e portanto, o patrimônio da massa não seria suficiente para o pagamento dos débitos. Diante de tal panorama fático, impõe-se a manutenção da decisão agravada.
RECURSO DESPROVIDO NOS TERMOS DO ART. 932, VIII DO CPC DE 2015 C/C ART, 31, VIII, B, DO RITJERJ. Ao contrário dos sustentado neste agravo interno, há indícios mais do que suficientes de confusão patrimonial entre empresas do grupo de pessoas da mesma família. As razões do agravo interno são meras reiterações dos pontos já antes trazidos e devidamente enfrentados na decisão recorrida. Apenas no que toca à arrecadação do imóvel destinado à residência dos agravantes, cabe acolher o recurso. O bem de família, tal como estabelecido pela Lei 8.009/90, é impenhorável e não responde por qualquer tipo de dívida, civil, comercial, fiscal ou previdenciária, salvo as que se ajustarem às exceções previstas no art. 3º da referida lei, o que não é o caso. Trata-se de norma de ordem pública, suscitável a qualquer tempo e grau de jurisdição. Para a configuração do bem de família, não há exigência de que o imóvel objeto de constrição seja o único pertencente à entidade familiar protegida, desde que demonstrado que é efetivamente destinado à residência da família. Pela análise dos documentos de fls. 122/153 do Anexo 1, verifica-se a existência de diversas faturas de energia elétrica, assinatura de jornal, telefone fixo e tv por assinatura em nome dos agravantes, que demonstram o estabelecimento de moradia permanente no imóvel. Destarte, resta caracterizado o bem de família, que também inclui a hipótese do sócio que institui sua residência em imóvel registrado no nome da pessoa jurídica, conforme precedentes do STJ
[Agravo Interno no Agravo n. 0033165-77.2016.8.19.0000, relator Des. Ferdinando Nascimento, julg. 22/08/2017]
Quanto a impenhorabilidade, consta do v. acórdão:
Trata-se de norma de ordem pública, suscitável a qualquer tempo e grau de jurisdição, de cunho eminentemente social e humanitário, que tem por escopo resguardar o direito à residência ao devedor e a sua família, assegurando-lhes condições dignas de moradia. O interesse tutelado pelo ordenamento jurídico não é do devedor, mas da entidade familiar, que detém estatura constitucional (arts. 6º c/c 226 CRFB).
Observe-se o seguinte trecho, constante do v. acórdão proferido no REsp. n. 1433636/SP, rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma do STJ, julg. 02/10/2014:
a determinação judicial de que, mediante desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida, fossem arrecadados bens protegidos pela Lei n. 8.009/1990 traduz-se em responsabilização não apenas dos sócios pelo insucesso da empresa, mas da própria entidade familiar, que deve contar com especial proteção do Estado por imperativo constitucional (art.226, caput)
Portanto, não obstante o direito patrimonial dos credores da pessoa jurídica falida, os quais integram a massa falida subjetiva, mesmo que haja decisão julgando procedente o pedido formulado em incidente de desconsideração da personalidade jurídica em face de sócio ou acionista de agente econômico sob regime falimentar, a jurisprudência vem consolidando entendimento seguindo a qual não pode haver constrição sobre bem de família.
Este entendimento jurisprudencial se nos parece o mais consentâneo com os princípios constitucionais, principalmente o da dignidade da pessoa humana.
PERGUNTAS SOBRE O TEMA
1 – A falência pode ser estendida ou ter seus efeitos aos sócios de responsabilidade limitada?
Conforme artigo 82-A da Lei 11.101/05 não pode ocorrer a falência em relação a tais sócios, mas admite-se a abertura de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, observadas as regras do Código de Processo Civil, para fins de perquirir a respeito das responsabilidades de sócios, acionistas, terceiros, grupos econômicos, administrador e controlador.
2 – Julgado procedente o pedido, pode haver penhora sobre bem de família?
De acordo com a jurisprudência mencionada, não poderá haver a penhora sobre bem de família.