A Função Social da Empresa e o Art. 47 Da Lei 11.101/05
Neste texto alinharei algumas breves reflexões sobre o art. 47 da Lei 11.101/05 e de forma mais direta sobre a “função social da empresa”.
É de se ressaltar que empresa – no sentido jurídico – é a atividade econômica organizada, conforme regra do art. 966 do Código Civil e quem a exerce é a sociedade empresária [pessoa jurídica de direito privado] ou a pessoa natural [v.g. sociedade limitada unipessoal – Lei 14.195/2021].
Muitos não fazem a imprescindível e importante distinção entre “empresa” (atividade econômica) e pessoa jurídica (aquela que exerce a atividade econômica), por exemplo. Empresa é uma coisa; sociedade empresária que a exerce é outra.
É de se colocar em destaque o postulado, a axiologia, as diretrizes, o norte e principiologia constante do enunciado legal, tudo visando a tentativa de soerguimento da atividade econômica que se encontra em crise econômico-financeira, antes que ocorra a eventual abertura judicial da falência.
Já escrevi algumas linhas sobre a crise da empresa (“Crise e recuperação da empresa” – 14/09/2023) e a reestruturação (“Recuperação judicial e extrajudicial” – 18/07/2023), e agora apresento breves considerações sobre o norte estabelecido no art. 47 da Lei 11.101/05.
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA
Antes de se falar sobre a função social da empresa, faz-se necessário entender o significado da palavra “função”.
Todos os que se propõem a escrever a respeito da Lei 11.101/05 necessariamente passam por determinados institutos, precisam estuda-los com profundidade[1].
Há vários escritos sobre a “função social” da empresa (atividade econômica, reitere-se), mas nem sempre existe a real ciência da precisão técnica do que seja “função”.
Colhe-se do Dicionário Houaiss, “função” é a atividade natural ou característica de algo, obrigação a cumprir, papel a desempenhar pelo indivíduo ou instituição[2] [3].
A “função social”, para J.J. Calmon de Passos, função social:
Pode ser entendida como atividade do indivíduo ou de suas organizações, desenvolvida no sentido de atender a interesses ou obter resultados que ultrapassam o do agente. Por importa traduz essa atividade exercício de direito, dever, poder ou competência. A natureza da atividade e o modo pelo qual se cumpre são irrelevantes. Não definem função, qualificam-na, apenas[4]
A Constituição Federal, ao tratar da ordem econômica e financeira, estabelece em seu art. 170, inc. III, a função social da propriedade, sendo que de há muito escrevi:
É interessante notar que, efetivamente, a Constituição Federal de 1988 não pode ser considerada como o primeiro texto a tratar da função social. De fato, consoante adverte Gustavo Tepedino (2004), o artigo 147 da Carta Política de 1946 já estabelecia que o uso da propriedade seria condicionado ao bem-estar social. E o mesmo autor ainda assevera que a Emenda Constitucional de 1969, em seu artigo 160, III, também dispunha que a ordem econômica e social tinha por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base em princípios, dentre os quais o da função social da propriedade[5]
O art. 5, inc. XXIII assim está disposto:
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social
O Código Civil estabelece:
Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1º- O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas
Por sua vez, consta do art. 2.035, parágrafo único:
Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos
No sentir do jurista Francisco Cardozo Oliveira:
Ainda que seja controvertida a possibilidade de se pensar a funcionalização da atividade empresarial, não deixa de ser viável, do ponto de vista jurídico, conceber a idéia de que a empresa, que é forma de exercício do direito de propriedade, carrega da propriedade elementos de função social. Esta funcionalização se manifesta através da responsabilidade social da empresa pela redução das desigualdades[6]
E o mesmo autor assevera:
No ordenamento jurídico brasileiro, pelo menos a partir da Constituição de 1988, já não é mais possível isolar a propriedade de sua função social, de forma a reconhecer um suposto núcleo conceitual infenso à funcionalização. A função social penetra a estrutura do direito de propriedade de forma a que o exercício dos poderes proprietários não diz respeito apenas à relação do proprietário com a coisa, mas está subordinado a uma orientação finalística que considera o uso da coisa e a relação social e historicamente situada entre proprietários e não-proprietários[7]
Por outro lado, entende Fábio Konder Comparato que:
cabe evitar contrassenso e há de se estabelecer as distinções e precisões fundamentais. Para o mesmo Comparato (1995), defender a função social da propriedade, sem especificações maiores, pode ser e tem sido um argumento valioso para a sustentação do status quo social em matéria de regime agrário e de exploração empresarial capitalista. E alhures adverte o mesmo autor que o desenvolvimento da atividade econômica se traduz em poder-dever, com o respeito a certos limites estabelecidos pela lei (COMPARATO, 1996). E prossegue afirmando que o dever de adequada utilização de seus bens em proveito da sociedade supõe a existência de uma política urbana e de uma política agrária, sendo que há interesses internos e externos na empresa. Mais adiante, esposa o entendimento de que o conceito de função social da empresa é nulo, justamente porque existe um vício insanável. A empresa capitalista é uma entidade que busca o lucro, e não se deve considerar a ideia simplista de que somente é uma unidade destinada à produção de bens ou de prestação de serviços. Segundo seu argumento, que sem dúvida deve ser devidamente considerado pelo exegeta sistemático, o objeto da empresa está sempre subordinado ao objeto final de apuração e distribuição de lucros (COMPARATO, 1996)[8]
O jurista Jair Gevaerd entende que a empresa é capitalista e busca o lucro, e este é a sua (real) finalidade, asserto que está em consonância com a realidade pós-moderna.
Para o pensador, existe uma função da empresa capitalista. Isso porque, dependendo:
[…] (i) do balanço de poder existente entre os estamentos sociais envolvidos nas relações produtivas, e, (ii) das categorias jurídicas que presidem a apropriação, troca e circulação de riquezas, estará ou não ‘apta’ a distribuir, pelo sistema jurídico da propriedade (estrutural) e dos contratos e obrigações (fisiológicos), mais (ou menos) benefícios, para maior (ou menor) contingente de destinatários[9]
Por fim, visando a reiterar sua posição acerca da função social da empresa, escreve o autor:
Interessante notar que Lélio Lauretti, Professor de Ética Empresarial nos cursos do IBGC – Instituto Brasileiro de Governança Corporativa, afirma serem ‘economicamente bem sucedidas’ constitui uma pré-condição para que as empresas possam ter uma participação decisiva no terreno da ação social. Diz mais, e no mesmo sentido, que as empresas cronicamente deficitárias exercem uma ‘disfunção social’ , ou ‘antítese do que desejamos como seu papel[10]
A livre iniciativa prevista na Constituição Federal (art. 1º, inc. IV, art. 170, caput) implica risco do empreendedor de se aventurar no mercado competitivo, podendo (i) dele ser retirado, via processo de falência ou (ii) pedir tutela estatal, via regime recuperatório, considerando a crise econômico-financeira.
Em havendo “disfunção econômica” – aqui utilizando a feliz expressão de Gevaerd -, tanto em decorrência de falência quanto em função da reestruturação empresarial, nem sempre poder-se-á falar em função social da empresa, salvo melhor juízo[11].
A pessoa jurídica, diante dos problemas financeiros crônicos, quase sempre ligados à ausência de fluxo de caixa, não raro, deixa de criar postos de trabalho; encontra sérias dificuldades na geração de riquezas e, diante da insuficiência de caixa, não recolhe a tempo e modo correto os tributos devidos.
Nem sempre consegue horar todos os compromissos financeiros, de modo que a sustentabilidade[12] e a função social ficam totalmente prejudicadas, salvo engano.
A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA E A RECUPERAÇÃO JUDICIAL
Pelo raciocínio até aqui desenvolvido, possível perceber que um agente econômico sob o regime de recuperação judicial nem sempre poderá seguir à risca o contido no art. 47 da Lei 11.101/05.
Ocorrendo uma “disfunção econômica” , que determine a necessidade de se ajuizar a ação de recuperação judicial, no âmbito desta o devedor precisará lidar com duas questões fundamentais: gerir o passivo até então existe e honrar as dívidas posteriores.
Mais do que isso, precisará ter o mínimo de condições visando a mantença de sua sustentabilidade [evitando-se inclusive a abertura da falência], a fim de continuar operando, bem como cumprir, quanto possível, a função social.
O OBJETIVO DA LEI 11.101/05
O art. 47 da Lei 11.101/05 traça com tinta forte os objetivos dos regimes recuperatórios: buscar o soerguimento do agente econômico em crise, mantendo-se em operação no mercado, preservando a empresa e, em consequência, os postos de trabalho.
A preservação da empresa a fim de que cumpra sua função social é o norte da lei.
Porém, não havendo requisitos mínimos para a reestruturação da empresa, a falência se impõe, é de rigor. Estando em estado de insolvência, de crise patrimonial aguda, irreversível, o agente econômico precisa ser retirado do mercado.
Há de se tentar recuperar as entidades que, em tese, podem se recuperar.
Para finalizar, como sempre, busco unir a filosofia ao direito da insolvência, citando algum pensador que reputo importante.
O filósofo Étienne de La Boétie, fraterno amigo do grande Michel de Montaigne, apresentando reflexão sobre Ulisses, assevera que este:
“[…] por mar e terra sempre procurava ver a fumaça de sua casa […]”[13]
O pensamento de Étienne certamente pode ser estendido aos gestores empresariais, aos incorporadores, que estão à frente da atividade econômica organizada em tempos pós-modernos.
[1] O jurista Eros Roberto Grau acentua: a mim encantam a tranquilidade e a segurança dos gênios-para-si-mesmos, donos de respostas-para-tudo, que disparam em qualquer situação ou circunstancia, sem perda de tempo na prática de exercícios aos quais os antigos se dedicavam, a leitura e a reflexão. Por que tenho medo dos juízes: (a intepretação/aplicação do direito e os princípios). 7ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 163.
[2] Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 1402, 1ª coluna.
[3] J.J. Calmon de Passos pondera: tudo quanto existe, existe para alguma finalidade, no sentido de que tudo quanto existe está associado a consequências de que é causa ou pressuposto e lhe revele a ‘função’. Os seres da natureza cumprem funções que lhe são inerentes e necessárias, ditadas por algo a que emprestamos os atributos do divino ou buscamos explicar rejeitando toda e qualquer metafísica. O homem, entretanto, por força de sua especificidade – ser não absolutamente determinado – ultrapassa esses limites e pode se imputar funções ou estas lhe podem ser imputadas, com vista a objetivos que lhe são propostos socialmente. Função social do processo. Revista Forense, vol. 343, p. 85. Em resumo, para o autor, função é um atuar a serviço de algo que nos ultrapassa. Op. cit., p. 85.
[4] Op. cit., p. 85.
[5] CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009, p.187.
[6] Uma nova racionalidade administrativa empresarial. In: GEVAERD, J.; TONIN, M. M. (Coord.). Direito Empresarial & Cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004. p. 120.
[7]Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, pp. 241-242. Por fim, a ideia de função social contempla uma atividade por parte do proprietário tendente a concretizar, na realidade social e histórica, determinando objetivo homogeneizador, integrado à ordem jurídica, que qualifica o modo de apropriação de bens, notadamente, de bens de produção. A função social, todavia, é mais ampla que a função econômica. A funcionalização inscreve na concretude das relações sociais e de produção uma dinâmica que busca realizar objetivos de justiça social. O conteúdo finalístico do direito de propriedade e da posse obriga o proprietário e o possuidor na relação social e jurídica concreta com os não-proprietários e os não-possuidores. Op. cit., pp. 243-244. É possível afirmar que o princípio da função da empresa é importante corolário lógico do princípio da função social da propriedade privada, e este, se no passado era compreendido como direito absoluto, a Constituição Federal de 1988 apresentou limites, que, não resta dúvida, possui viés eminentemente social, impondo restrições à livre disposição da propriedade.
[8] Apud CLARO, Carlos R. Op. cit., p. 191. Finaliza Comparato: A tese da função social das empresas apresenta hoje o sério risco de servir como mero disfarce retórico para o abandono, pelo Estado, de toda política social, em homenagem à estabilidade monetária e ao equilíbrio das finanças públicas. Quando a Constituição define como objetivo fundamental de nossa República ‘construir uma sociedade livre, justa e solidária’ (art. 3º, I), quando ela declara que a ordem social tem por objetivo a realização do bem-estar e da justiça social (art. 193), ela não está certamente autorizando uma demissão do Estado, como órgão encarregado de guiar e dirigir a nação em busca de tais finalidades. Apud CLARO, Carlos R. Op. cit., p.191-192.
[9] Responsabilidade Social, Inclusão e Sustentabilidade: vértices empresariais dos Direitos Fundamentais. In: CANEZIN, C. C. (Coord.). Arte Jurídica. Curitiba: Juruá, 2004, p. 195.
[10] Op. cit., p. 202. Destaques no original.
[11] Tal disfunção econômica, consoante ensina Gevaerd, inicia, em regra, quando os incorporadores desprezam princípios essenciais do estabelecimento da empresa, tais como suficiência do aporte, provisão de capital de giro etc., e continua, para além desse momento, quando medidas corretivas, tanto administrativas quanto econômicas e jurídicas, não são tomadas para reversão da situação anômala. Op. cit., p. 202.
[12] De fato, a sustentabilidade da empresa tem a ver com a prática de atos devidamente planejados, sem ferir o meio ambiente; o mercado no qual atua a entidade; e os interesses da coletividade (sociedade), a fim de que se busque a perenidade empresarial. Destaque-se que cabe à empresa criar de forma ética um novo modelo gestão e que seja capaz, efetivamente, de apresentar ganhos (lucros) aos proprietários e ao mesmo tempo espraie efeitos positivos no âmbito social e ambiental. O desenvolvimento sustentável de uma empresa tem ligação direta com uma postura séria, ética e moral, perante a coletividade, o meio ambiente e o próprio Estado, em última instância. CLARO, Carlos R. Op. cit., p. 188. Acentua Francisco Cardozo Oliveira: Existe, portanto, um compromisso ético-social da empresa com a comunidade que precisa ser mensurado pela contabilidade e traduzido nas taxas de lucros esperados pelos investidores. Este compromisso ético-social, na linha dos interesses não-proprietários envolve diretamente consumidores e trabalhadores e, de forma mais ampla, os membros da comunidade em geral. Apud CLARO, Carlos R. Op. cit., p. 188. Ainda, fiz constar: Entende-se, pois, que para falar em sustentabilidade da empresa se torna necessário, antes, verificar se está ela cumprindo suas obrigações de forma ética e moral, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento da sociedade de pessoas na qual se insere. A sustentabilidade tem, pois, relação direta e visceral com o cumprimento do objeto social da empresa, que, procurando manter-se no mercado, também busca reproduzir-se com responsabilidade social. Contanto que a empresa cumpra, na medida do possível, com sua responsabilidade social, buscando por exemplo a verdadeira inclusão social dos menos favorecidos, contribuindo para a erradicação senão total pelo menos de forma parcial da pobreza e da marginalização do ser humano, a teor do artigo 3º, inciso III da Constituição Federal; não aguilhoe o ecossistema e ainda contribua para o crescimento da nação, certamente que obterá sucesso nos seus negócios e ao mesmo tempo contribuirá para o desenvolvimento social-econômico do Brasil. CLARO, Carlos R. Op., cit., p. 189.
[13] Discurso da Servidão Voluntária. 4ª ed., 2ª reimp. São Paulo: Editora Brasiliense, 2001, p. 24.