Mercado, Agente Econômico E Risco
O presente texto apresentará algumas reflexões sobre o mercado, o agente econômico, bem como sobre os riscos assumidos ao constituir pessoa jurídica. (3 situações que podem gerar crise do agente econômico)
De início, o Estado incentiva o empreendedorismo. Em 2019 foi editada a Lei 13.874, que dispôs sobre os direitos de liberdade econômica.
Quem anela o efetivo exercício da atividade econômica – constituindo sociedade empresária – há de estar ciente dos riscos (certamente imponderáveis – a pandemia mundial serve de exemplo) inerentes a esta mesma atividade.
Conforme doutrina de Jair Gevaerd,
A eficiência e a lucratividade, portanto, são princípios que, conjugados com o princípio do risco, têm profundas e definitivas implicações no âmbito da aferição da licitude da atividade institucional e da conveniência da superação (ou não) de regimes ordinários de responsabilidade dos sócios quanto às dívidas sociais[1]
Na Constituição Federal há o princípio da livre iniciativa – um dos pilares da ordem econômica constitucional -, ou seja, a possibilidade de as pessoas se lançarem na vida econômica, empreendendo, constituindo pessoa jurídica, buscando o lucro.
Um dos princípios fundamentais constantes da Constituição Federal é o do livre iniciativa, ao lado dos valores sociais do trabalho [art. 1º, inc. IV]. Por sua vez, a livre iniciativa está prevista no art. 170, caput, sem descuidar da livre concorrência [inc. IV] e da busca do pleno emprego [inc. VIII].
O Estado exerce o papel de regulador da atividade econômica, bem como fiscaliza, incentiva [indicativo] o exercício desta ao setor privado [CF, art. 174]. Dito de outro modo, o Estado regula/limita atividade econômica privada.
Prepondera o interesse coletivo, para resguardar segurança nacional.
Ainda, se não se descuide do monopólio estatal [CF, art. 177].
O MERCADO COMO INSTITUIÇÃO
O mercado competitivo tem suas regras próprias. Para N. Gregory Mankiw, mercado é:
Um grupo de compradores e vendedores de um determinado bem ou serviço. Os compradores, como grupo, determinam a demanda pelo produto e os vendedores, também como grupo, determinam a oferta do produto. Os mercados assumem diferentes formas. Às vezes são altamente organizados, tais como os mercados de muitas mercadorias agrícolas. Neles, compradores e vendedores encontram-se em lugares e horários determinados, onde um leiloeiro ajuda a estabelecer os preços e a organizar as vendas[2]
O mercado, na linha de pensamento de Eros Grau, é uma instituição jurídica e opera sob dois requisitos: a calculabilidade econômica e a previsibilidade de comportamentos[3] daqueles que nele operam. A não observância destes requisitos pode levar à crise empresarial. (crise e recuperação da empresa)
O MERCADO E SUAS REGRAS PRÓPRIAS
Com regras próprias, o mercado carece de necessidade segurança jurídica, estabilidade, regularidade e constância, conforme esclarece o jurista Eros Grau.
De fato, princípio da livre iniciativa tem a ver com a liberdade de empreender no mercado competitivo, sendo que o agente econômico assume todos os riscos. Eros Roberto Grau ensina que:
Importa deixar bem vincado que a ‘livre iniciativa’ é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. A Constituição, ao contemplar a ‘livre iniciativa’, a ela só opõe, ainda que não a exclua, a ‘iniciativa do Estado’; não a privilegia, assim, como bem pertinente apenas à empresa[4]
Assim se posiciona a doutrina:
O Estado, com efeito, incentiva o empreendedor a ingressar no mercado competitivo. Sabe-se que de um lado há o princípio constitucional da livre iniciativa, e de outro lado existe a teoria do risco, consentâneo e inerente à atividade empresarial. O empreendedor tem ciência inequívoca que, de fato, existe sempre o risco (previsível) de o negócio não vingar e ser necessária a retirada da empresa do mercado, pela forma compulsória ou espontânea (leia-se: autofalência ou falência), ou mesmo requeira judicialmente o amparo estatal, via processo de recuperação. A liberdade da iniciativa, constante da Constituição Federal, nada mais é do que um princípio expresso do liberalismo econômico, mas aqui não cabe dissecar a respeito das relações de produção, do absolutismo da propriedade e muito menos da privada regulação, sem a participação estatal [5]
Jair Gevaerd ensina que:
Segundo, pois, a teoria ou princípio do risco mercantil societário, concede-se aos incorporadores – sob regime originariamente ilimitado ou não – o benefício da dúvida quanto à (i) suficiência, (ii) efetividade e (iii) materialidade dos aportes patrimoniais devidos à instituição. Onera-se-os, entretanto – e como não poderia deixar de ser – com os riscos inerentes à viciosa ou imperfeita avaliação, o que, pela generalidade das hipóteses e imprevisibilidade das consequências, abrange virtualmente todas as possiblidades de patologias societárias, relativamente ao aporte (por exemplo, fraude, dolo, erro, simulação, imperícia, imprudência, negligência etc.).
Ademais, a consideração do princípio do risco mercantil societário, combinado com o princípio da suficiência do patrimônio incorporado, implica notável balanceamento de momentos contrapostos (mas, não obstante, harmônicos), da disciplina principiológica. Confira-se:
(a) Em movimento diafragmático de relaxamento, atua o princípio da suficiência do patrimônio incorporado. Segundo ele não se questiona, neste momento, se os instituidores incorporaram – ou não – meios patrimoniais material e efetivamente suficientes para a persecução do objeto social. Homenageia-se a boa-fé, a confiança e a liberdade de iniciativa.
[…]
(b) Em movimento diafragmático de tensão, atua o princípio do risco mercantil societário. Segundo ele – e independentemente da presunção de suficiência explicitada sob ‘a’, ‘supra’ – não se pode exonerar a incorporador (ilimitado ou não) dos riscos inerentes à atividade mercantil[6]
Discorrendo acerca do princípio da suficiência patrimonial, Jair Gevaerd escreve:
Se a instituição visa, em regra, à permanência – na exata medida em que o objeto social não se compadece de perseguição limitada no tempo – os meios patrimoniais que a suportam (e que possibilitam, precisamente, o atingimento do fim social) não podem estar ao alcance do irresponsável desfrute, seja dos sócios, seja de terceiros[7]
O pensamento esposado por Eros Roberto Grau quanto ao papel do Estado na economia:
paradoxalmente, foi sempre o Estado que, entre nós, promoveu, suportando o seu custo, inovações empresariais. Neste sentido, o Estado brasileiro caracterizou-se como ‘schumpeteriano’. Basta lembrarmos, aqui, os movimentos de criação de empresas estatais no governo Getúlio (década de 40 do século passado) e durante a ditadura militar (segunda metade da década de 60), além do desenvolvimento do governo Juscelino Kubitschek e do papel do BNDES e de outras agências e sociedades governamentais, como a EMBRAPA[8]
Quanto ao mercado competitivo, do qual participa o agente econômico, Max Weber assevera:
Falamos de mercado quando pelo menos por um lado há uma pluralidade de interessados que competem por oportunidades de troca. Quando estes se reúnem em determinado lugar, no mercado local, no comercio a grande distância (anual, feira) ou no de comerciantes (bolsa), temos apenas a forma mais consequente da constituição de um mercado, sendo esta, no entanto, a única que possibilita o pleno desdobramento do fenômeno específico do mercado: o regateio[9]
A Constituição Federal erigiu como princípio a livre iniciativa.
Todos os que visam a empreender, ingressando no mercado competitivo [livre concorrência], hão de estar cientes dos riscos, imponderáveis, [cabe colocar em prática o princípio da suficiência de ativos].
O lucro é, com efeito, inerente ao exercício da atividade econômica privada, mas os incorporadores hão de ter em mente a necessidade de observância do princípio da preservação da empresa [mantença no mercado], sua função social e valorização do trabalho humano (A função social da empresa e o art. 47 da Lei 11.101/05).
O mercado, na linha de pensamento de Eros Grau, é uma instituição jurídica e opera sob dois requisitos: a calculabilidade econômica e a previsibilidade de comportamentos[10]. Na visão de Nicholas Gregory Mankiw, o mercado é um grupo de compradores e vendedores de um determinado bem ou serviço. Os compradores, como grupo, determinam a demanda pelo produto e os vendedores, também como grupo, determinam a oferta do produto[11].
O mercado competitivo – no qual há muitos compradores e vendedores que negociam produtos – tem estreita ligação, por evidente, com a economia. Euro Brandão, em formidável obra, esclarece que vive-se a síndrome do economicismo, ou seja, a crença de que tudo gira em torno do econômico[12]. Para este autor, há preocupação excessiva com o aspecto econômico e foram geradas ideologias em que apenas o ângulo econômico do homem é considerado. Temos aí o marxismo e o capitalismo selvagem para evidenciar isso[13].
As entidades em crise econômico-financeira, que atuam de forma deficitária no mercado, caso queiram, poderão sair da UTI, mediante adoção de uma das formas de reestruturação previstas na Lei 11.101/05, alterada em alguns pontos no dia 24/12/2020. A medida mais comum, como consabido, é a recuperação plenamente judicial, voltada às médias e grandes corporações[14].
O legislador de 2005 olvidou por completo das micro e pequenas empresas e das pessoas físicas endividadas[15], mas esse é tema para outro escrito.
São poucas as entidades empresárias que conseguiram se recuperar com base, também, na Lei 11.101/05, voltando a atuar regularmente no mercado, a partir de 2005. A grande maioria entrou em processo de falência, considerando a inviabilidade/impossibilidade de cumprimento do plano de reestruturação e mantença regular da atividade econômica desenvolvida; muitas, para fins recuperacionais, acabaram por se desfazer de ativos para fins de cumprimento efetivo do plano de reestruturação, como sói ocorrer com grandes corporações.
O baixíssimo percentual de entidades que retornaram ao mercado competitivo indica que a lei não vem contribuindo para o soerguimento da “empresa” em crise. Por óbvio ululante, a lei, com viés eminentemente econômico (sobrepondo-se de forma exagerada sobre o jurídico), não pode, sozinha, socorrer quem quer que seja. A lei não recupera entidades em crise; a lei é apenas e tão somente um instrumento colocado no sistema jurídico para auxiliar no procedimento recuperatório.
O Estado-juiz não é a salvação dos que estão em crise econômico-financeira, considerada momentânea, passageira. De há muito se foi o tempo em que o devedor, de boa-fé e infeliz nos negócios, colocava na mão do Estado-juiz todos os seus problemas e aguardava a solução de sua crise (concordata preventiva, lá dos tempos de 1945).
Conforme dito no preâmbulo, o mercado é um dos componentes importantes para o sucesso ou o fracasso da reestruturação empresarial. As instituições financeiras – que não raro têm peso preponderante em atos assembleares -, simplesmente podem auxiliar na recuperação ou contribuir de forma significativa para a abertura de uma entidade recuperada. Triste, mas evidente realidade, constatada em vários processos judiciais.
O sistema econômico (instituições financeiras), quando dos projetos de lei para elaboração de novo regime de falência e recuperação (2005), teve papel preponderante para direcionar o rumo da recuperação de crédito, mas não recuperação empresarial propriamente dita[16].
São conhecidas e públicas as pressões para que a redação do art. 49 da Lei 11.101/05 ficasse de acordo com a conveniência, conforto e interesse das instituições financeiras, com papel sempre relevante e preponderante nos processos de reestruturação plenamente judicial.
Os supercredores, como assim denomino em meus escritos, não tomam conhecimento da recuperação judicial. Portanto, caso as forças do mercado não queiram, a entidade empresária não voltará a atuar regularmente, sendo que o caminho será a abertura judicial de falência.
Lamentável constatação para um país que vive múltiplas, acentuadas e complexas crises, inclusive de ordem econômica, social, moral, ética e agora, sanitária.
[1] Direito societário: teoria e prática da função. Curitiba: Genesis, 2001, p. 306.
[2] Introdução à economia. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 66. Quanto ao mercado: GRAU, Eros R. Por que tenho medo dos juízes: (a intepretação/aplicação do direito e os princípios). 7ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016.
[3] A ordem econômica na Constituição de 1988. 11ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
[4] Op. cit.,p. 206. Destaques no original.
[5] CLARO, Carlos R. Estado regulador e atividade empresarial na sociedade pós-moderna. In – Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 64, out. 2009 – dez 2009. Porto Alegre: AMP/RS, 2010, p. 149. Prossegue o autor: a liberdade de exercer atividade esbarra inexoravelmente em princípios valiosos e fundamentais, sendo que essa liberdade nada mais é do que a ‘sensibilidade’ e a ‘acessibilidade a alternativas de conduta e de resultado’, no dizer do já citado Eros Grau. Op. cit., p. 149. Grifos no original.
[6] Op. cit., pp. 440-441. Destaques na obra.
[7] Op. cit., p. 325.
[8] Op., cit., p. 47. Conforme texto original.
[9] Economia e Sociedade. 1º Volume. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2009, p. 419. Prossegue: Chamamos racionalidade ‘formal’ de uma gestão econômica o grau de ‘cálculo’ tecnicamente possível que ela aplica. Ao contrário, chamamos racionalidade ‘material’ o grau em que o abastecimento de bens de determinados ‘grupos’ de pessoas (como quer que se definam), mediante ação social economicamente orientada, ocorra conforme determinados ‘postulados valorativos (qualquer que seja sua natureza)’ que constituem o ponto de referência pelo qual este abastecimento é, foi ou poderia ser julgado. Op. cit., p. 52. Grifos na obra. Acentua Eros Roberto Grau: O chamado ‘direito moderno’ é racional, na medida em que permite a instalação de um horizonte de ‘previsibilidade’ e ‘calculabilidade’ em relação aos comportamentos humanos – vale dizer: ‘segurança’. Cotidianamente trocamos nossa insegurança por submissão ao poder. Por que tenho medo dos juízes: (a intepretação/aplicação do direito e os princípios). 7ª edição. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 15. Destaques na obra. Pondera o mesmo autor: o mercado é instituição jurídica constituída pelo ‘direito positivo’. É expressão de um projeto político – como ‘princípio de organização social’ – e atividade. O Estado deve ‘garantir a liberdade econômica’ e, concomitantemente, ‘operar a sua regulamentação’. Op. cit., p. 17. Destaques no original. Ainda sobre o mercado: GRAU, Eros R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 11ª edição revisada e atualizada. São Paulo: Malheiros Editores, 2006. O jurista Jair Gevaerd bem pondera: Sem dúvida, o mercado manifesta mecanismos de defesa. Mediante eficiente sistema de circulação de informações, hoje com a cooperação de empresas especializadas em análise de desempenho e perfil de agentes econômicos, a coletividade de interessados em determinados ramos mantém constante troca de relevantes dados sobre a solvabilidade de clientes, concorrentes e parceiros mercantis. Op. cit., p. 546. O mercado competitivo – no qual há muitos compradores e vendedores que negociam produtos – tem estreita ligação com a economia de caráter neoliberal. Euro Brandão, em sua obra, esclarece que vive-se a síndrome do economicismo, ou seja, a crença de que tudo gira em torno do econômico. TER passou a ser mais importante que SER. O desejo de posse obnubilou a mente humana. Para ter mais poder econômico, pessoas, empresas, instituições, nações passaram a destruir o que se lhe antepusesse às suas aspirações materiais. A valorização humana na empresa. Curitiba: Champagnat, 1995, p. 9. Para este autor, há preocupação excessiva com o aspecto econômico e foram geradas ideologias em que apenas o ângulo econômico do homem é considerado. Temos aí o marxismo e o capitalismo selvagem para evidenciar isso. Op. cit., p. 12.
[10]A ordem econômica na Constituição de 1988. 11ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2006.
[11] Introdução à economia. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 66.
[12] A valorização humana na empresa. Curitiba: Champagnat, 1995, p. 9.
[13] Op. cit., p. 12.
[14] Evidentemente que a Lei 11.101/05, no tocante à recuperação plenamente judicial, é inexoravelmente voltada às médias e grandes entidades, levando-se em conta uma série de fatores, inclusive o custo do processo judicial de reestruturação.
[15] Em relação às pessoas físicas mergulhadas em dívidas, mantém-se no sistema jurídico pátrio o instituto da insolvência civil [execução por quantia certa contra devedor insolvente], previsto no CPC de 1973 [art. 740 e ss.]. Observe-se o texto do art. 1052, CPC de 2015. O Brasil, uma vez mais, ficou bem distante das modernas legislações acerca da insolvência civil.
[16] Sobre o tema, ver: CLARO, Carlos R. Revocatória falimentar. 5ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2015.