O Princípio Da Dignidade Da Pessoa Humana Na Lei 11.101/05
Apresentam-se, neste espaço, algumas considerações a respeito do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana na Lei 11.101/05.
Para tanto, foram escolhidas duas pessoas, reputadas importantes tanto no regime recuperacional quanto no processo falimentar: o credor trabalhista [dificilmente inexiste credor trabalhista no processo de recuperação judicial) e o sócio/acionista (principalmente o minoritário) de pessoa jurídica sob falência.
De há muito já se escreveu sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, tanto em obra quanto em artigos científicos.
No nosso livro Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTR, 2009, foram acentuados vários aspectos a respeito do princípio constitucional, fazendo a conexão com a Lei 11.101/05. Aqui, já apresentei algumas considerações: Falência, sócios e princípio da dignidade da pessoa humana (29/09/2023).
Já alinhei que:
O princípio da dignidade da pessoa humana, de grande magnitude e profundidade, se faz presente na Constituição Federal de 1988, especialmente no art. 1º, inciso III, e também no art. 170, ‘caput’, aqui já constando do corpo dos princípios gerais da atividade econômica. É considerado, pois, como ‘[…] o princípio supremo no trono da hierarquia das normas’, conforme assevera Paulo Bonavides, ao escrever o prefácio da obra de Ingo W. Sarlet (2006b, p. 16). De fato, tal princípio constitucional está no topo da pirâmide de todo o catálogo de princípios fundamentais constitucionais, tal como assevera o mesmo Sarlet (2006b, p. 80)
(obra citada, p. 32)
Conforme Imannuel Kant (1980, apud SARLET, 2006b), quando a coisa tem preço, outra pode ser equivalente, mas quando não se pode mensurar, quando a coisa está acima de todo e qualquer preço, aí estar-se-á inexoravelmente diante do princípio da dignidade da pessoa humana, o qual se encontra num degrau bem superior em relação aos demais princípios constantes do catálogo constitucional brasileiro
(CLARO, Carlos R. Op. cit., p. 33)
O Credor Trabalhista Na Recuperação Judicial
Pensando em credor trabalhista no processo de recuperação judicial imediatamente vem à mente a regra do art. 54 da Lei 11.101/05, com as alterações advindas com a Lei 14.112/2020 [foi excluído o parágrafo único, incorporando-se dois parágrafos].
Em resumo, o texto legal, de certa forma, observa o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, quanto ao pagamento dos débitos trabalhistas, fato que se deve colocar em relevo.
O plano de reestruturação empresarial, a ser apresentado no prazo de 60 (sessenta) dias, a contar da publicação da decisão prevista no art. 52, não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para pagamento dos créditos trabalhistas ou em decorrência de acidentes de trabalho, vencidos até a data de distribuição da ação de recuperação judicial.
Segundo a regra do §1º, do art. 54, o plano não poderá, ainda, prever prazo superior a 30 (trinta) dias para o pagamento, até o limite de 5 (cinco) salários-mínimos por trabalhador, dos créditos de natureza estritamente salarial vencidos nos 3 (três) meses anteriores ao pedido de recuperação judicial.
Tal prazo poderá ser estendido em até 2 (dois) anos, se o plano de reestruturação atender, cumulativamente, estes requisitos:
I – apresentação de garantias julgadas suficientes pelo juiz;
II – aprovação pelos credores titulares de créditos derivados da legislação trabalhista ou decorrentes de acidentes de trabalho, na forma do § 2º do art. 45 desta Lei; e
III – garantia da integralidade do pagamento dos créditos trabalhistas
O prazo para pagamento trabalhista subiu de 1 (um) para 2 (dois) anos, guardadas as condições previstas no §2º, do art. 54.
Já fiz constar na obra referenciada:
A impossibilidade de prover a subsistência básica do trabalhador, somada ao fato de que no não pagamento dos valores devidos, e que devem ser pagos, já que legítimo, segundo consta expressamente no art. 54, poderá acarretar ao trabalhador uma existência indigna, certamente se está a afrontar de morte o princípio constitucional analisado. E mais ainda. O não pagamento das verbas devidas ao trabalhador de chão de fábrica, por exemplo, poderá também (apenas em tese, e dependendo da análise do caso concreto), fazer com que não tenha ele (ou mesmo seus dependentes) o direito a uma vida com o mínimo de dignidade, se é que possível mensurar o que venha a ser digno, nos casos de ausência de recursos financeiros para a compra de alimentos, por exemplo. A privação de necessidades mínimas indispensáveis à própria subsistência do trabalhador (e de seus dependentes diretos), poderá ocorrer caso não seja ele pago em conformidade com a Lei em comento, e é o que vem ocorrendo
(Op cit., p. 35)
Por justamente ser o princípio constitucional mais importante, com grande relevo, a dignidade da pessoa humana, salvo engano, se faz presente na regra do art. 54 da Lei 11.101/05.
O Sócio/Acionista De Pessoa Jurídica Sob Falência
A Lei 11.101/05, na esteira do Decreto-Lei 7.661/45, é bastante confusa quanto a determinada terminologia. Nem sempre resta cristalino se determinado texto legal faz referência à entidade falida ou a seus sócios/acionistas.
Consta da regra do art. 103 da Lei 11.101/05:
Desde a decretação da falência ou do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor.
Parágrafo único. O falido poderá, contudo, fiscalizar a administração da falência, requerer as providências necessárias para a conservação de seus direitos ou dos bens arrecadados e intervir nos processos em que a massa falida seja parte ou interessada, requerendo o que for de direito e interpondo os recursos cabíveis.
Além dos direito de caráter processual – bem como a defesa de direitos patrimoniais -, quer-se crer que, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, os sócios/acionistas (especialmente os minoritários) têm outros direitos.
Faz-se constar desde logo que o enunciado contido no art. 38 do Decreto-Lei 7.661/45 não se faz presente na Lei 11.101/05.
Não mais se fala em “módica” remuneração” ao falido ou sócio de entidade falida.
A depender do caso concreto – portanto, aqui se está a escrever apenas e tão somente a título acadêmico – alguns outros direitos podem ser concedidos aos sócios/acionistas de agente econômico em processo falimentar.
Trago ao alcance da mão a figura do Trust, tema que por mim já foi estudado.
Primeiramente, a abertura judicial da falência não faz com que a entidade falida, num primeiro momento, perca a propriedade sobre os ativos arrecadados.
Tanto é verdade que, em se tratando de bens imóveis arrecadados, por exemplo, cabe averbação da falência junto à matrícula imobiliária.
Por óbvio ululante, não se transfere a propriedade dos bens (móveis, imóveis) à massa falida [pessoa forma, que existe apenas e tão somente enquanto perdurar o processo falimentar].
A falência não é causa justificadora para transferência de propriedade para a massa falida. A propriedade é transmitida a quem adquirir os bens no momento da realização dos ativos.
Mas, isso é tema para outro texto.
Prosseguindo, sempre entendi que há possibilidade de novo paradigma no âmbito da falência.
Em relação ao sócio ou acionista de pessoa jurídica sob falência, escrevi que:
ao contrário do regime falimentar anterior, a Lei 11.101/05 não concede ao devedor [sócio/acionista ou empresário individual] o direito de perceber quantias da massa falida [art. 38 do Dec.-Lei 7.661/45]. Houve total silêncio a respeito da pessoa do sócio ou acionista. Mas estes sofrem, além dos efeitos jurídicos naturais da sentença, outros deletérios à própria dignidade da pessoa humana, pois, já se afirmou que a pecha de falido ainda existe e invariavelmente se pensa que a falência ocorre em função de atos praticados pelos sócios, diretores ou controladores da empresa. Tal asserto não se mostra consentâneo com a realidade hodierna, pois a falência pode ter inúmeras causas, até mesmo a má-administração, sem dúvida. Mas afirmar que a derrocada é, necessariamente, em função de ato dos incorporadores, tal asserto se traduz em certo exagero
[CLARO, Carlos R. A propriedade e a administração dos bens na falência. Revista do Ministério Público do Rio Grande do Sul, n. 66, maio-2010 – ago/2010. Porto Alegre: AMPP/RS, 2010, p. 143]
Prosseguindo,
A falta de oportunidade do sócio ou acionista; a sua quase que plena exclusão social e a impossibilidade de sustentar a própria família sem dúvida aguilhoam de morte o princípio da dignidade da pessoa humana. Diante da ofensa, certamente que se pode buscar algum mecanismo jurídico para mitigar os efeitos deletérios da sentença que retira o devedor [empresário ou empresa] do mercado. E o presente texto se propõe a exatamente questionar tal aspecto, mostrando-se coerente com a realidade apresentada pela Constituição Federal, com vista à proteção do incorporador ou sócio/acionista enquanto perdurar o procedimento próprio falencial. E o mecanismo que se sugere é justamente a figura do trust, ainda de pouquíssima utilização no sistema jurídico nacional, mas que sem sombra de dúvida pode ser uma saída [com alguns temperos] para [tentar] resolver a situação de desequilíbrio das pessoas titulares da empresa em decorrência da falência. Com efeito, desde logo se afirma não se tratar de texto meramente especulativo, sem base científica. E a solução que ora se apresenta está em perfeita sintonia com a realidade constitucional, especialmente porque o primeiro e principal princípio – o da dignidade da pessoa humana – foi colocado em relevo, não se podendo simplesmente ignorar a figura do incorporador no âmbito falimentar. Por fim, assevera Emilio Betti que cabe ao hermeneuta reivindicar a liberdade de pensamento, cumprindo a missão de dizer a verdade segundo a sua ciência e convicção , e o mesmo pensador faz constar ainda que a verdade não é um dado da natureza, mas sim, um valor da mente , de modo que o presente busca abrir novas fronteiras para que se analise a figura do incorporador/sócio/acionista sob um outro viés, um viés eminentemente constitucional.
[Op. cit., p. 144]
Em resumo,
mesmo existindo formal arrecadação do patrimônio afetado do devedor, possível é pedir a exclusão de todos aqueles bens necessários à subsistência do sócio ou acionista, enquanto não alienados ou mesmo e enquanto não encerrado por sentença o processo de falência, e tal pleito dependerá, necessariamente, de o caso concreto comportar a entrega de bens a tais pessoas
[Op. cit., p. 144]
As reflexões aqui apresentadas são plausíveis, sendo que o devedor falido (ou os titulares do agente econômico falido) precisa de um mínimo existencial; carece sustentar a si e seus familiares.
Não raras vezes se vê diante de circunstancias totalmente adversas – não se descuide que a falência ainda é vista com certas reservas, qual na época de Roma – e a solução que se apresenta é bastante razoável.
Nem sempre a falência é causada por má-gestão, sendo este um tema para outro texto.
Para finalizar, fiz constar o seguinte pensamento:
Entende-se, pois, que se a lei falimentar ab-rogada previa de forma expressa a possibilidade de auxílio mensal à pessoa do “falido” [auxílio esse não mais constante da Lei 11.101/05] e considerando que cabe a prevalência do princípio maior da Constituição Federal – dignidade da pessoa humana – também sem sede de falência, dúvida não há de que pode ser instituída a figura do trustee, ou seja, a transferência da posse direta ao devedor falido [empresário] ou aos incorporadores da empresa, e que possível é a mudança de paradigma, afastando, definitivamente, a idea de que falido indica um ser execrável, e cujo destino é a marginalização da sociedade. Não é esse o escopo geral da assim denominada Constituição Cidadã
[Op. cit., pp. 150-151]