O Escopo Da Lei E O Pedido De Falência Formulado Pelo Credor
Há anos, caiu em minhas mãos uma ação que buscava a abertura judicial da falência do devedor, que não cumpriu a obrigação de pagamento de dívida.
O credor anexou mais de 800 [oitocentos] documentos – isso mesmo! mais de 800 documentos -, entre os quais, duplicatas, notas fiscais, instrumentos de protesto e assim por diante.
Ao me deparar com uma ação instrumentalizada com tantos papéis [na época o processo não era digital], refleti muito a respeito.
Não havia necessidade de tantos documentos visando a comprovar a ausência de pagamento, quer-se crer.
Era infindável a prova coligida pela parte autora e ocupou alguns volumes dos autos do processo, quiçá de forma desnecessária.
Puro desperdício de papel – a meu ver -, sem descuidar do tempo que o[a] magistrado[a] teria que gastar para passar os olhos folha por folha em vários volumes dos autos do processo.
Antes do ajuizamento da ação cabe fazer o indispensável exame da documentação que de fato é essencial à prova dos fatos. Nem sempre é o caso de anexar grande volume de dados.
O presente escrito visa a apresentar algumas reflexões a respeito do tema.
A Petição Inicial Do Pedido De Falência
De início, algumas equivocadas ideias relativas ao pedido de falência formulado pelos legitimados devem ser exorcizadas e definitivamente excluídas do pensamento do hermeneuta sistemático.
Mais que isso, crê-se firmemente que cabe uma verdadeira sessão de descarrego para afastar, definitivamente, a ideia de que a petição inicial deverá[ria] ser instruída com uma infinidade de documentos, quiçá desnecessários.

Por óbvio ululante, há os documentos essenciais, os imprescindíveis -inclusive aqueles exigidos por lei especial [Lei 11.101/05] e pelo Código de Processo Civil (art. 320).
Há outros documentos que visam a fazer prova da ausência de pagamento da dívida, bem como necessidade de retirada do devedor do mercado.
O pedido de abertura de falência formulado em face do devedor se não presta – nunca se prestou -, à cobrança de dívida não paga a tempo e modo corretos[1].
Trata-se de inequívoco meio de “coação” por parte do credor, com o objetivo de que ocorra o imediato pagamento do débito não espontaneamente liquidado.
O escopo da Lei 11.101/05 – quanto a falência – não é este. Nunca foi.
Para tal fim – cobrança de dívida – existem outros mecanismos jurídicos indicados, de modo que esta é uma primeira questão a ser considerada.
Fiz constar numa obra escrita ao tempo de vigência do Decreto-Lei 7.661/45 que
criou-se verdadeiro procedimento de cobrança, via processo falimentar, a pedido do credor, sendo que alguns tribunais pátrios afastavam os pedidos quando tinham tal conotação [2]
Por outro lado, a Lei 11.101/05, que trata da falência e da reorganização da sociedade empresária e empresário em crise visa primeiramente a tentativa de saneamento e reestruturação do agente econômico e mantença no mercado.
Caso a crise tenha caráter patrimonial – há efetiva insolvência do devedor -, cabe a retirada do agente econômico do mercado.
Manter a atuação de devedor insolvente [em crise patrimonial inarredável] no mercado, é criar [em tese] efeito multiplicador em relação a outras “empresas”.
Há de se colocar em degrau superior a preservação do crédito público, nesta situação específica de insolvência.
Detectada a crise patrimonial inarredável – não sendo possível manter o agente econômico no mercado -, o Estado passa a ter interesse na imediata liquidação da “empresa”.
Objetiva-se a realocação de seus ativos na economia, nos termos do art. 75, inc. II, da Lei 11.101/05.
O Estado tem interesse em retirar do mundo econômico a “empresa” deficitária, aquela que não reúne as condições mínimas para continuar atuando no mercado competitivo.
De fato, conforme exposto, o exercício da atividade econômica de “empresa” deficitária prejudica o crédito público, em última análise[3].
Em situação tal, o Estado tem interesse na imediata liquidação de ativos da empresa [quando existentes] e repartição do produto da venda – de forma proporcional, segundo as regras legais – entre os credores[4].
Não pode ocorrer a continuidade regular do agente econômico deficitário, a ou seja, a atividade que compromete de alguma forma o crédito público e a circulação de bens.
As regras e princípios de mercado são observadas, considerando o sistema vigente.
Compete ao Estado-juiz, analisado o caso concreto, retirar do devedor do mercado, caso presentes todos os pressupostos autorizadores.
Tanto o ab-rogado Decreto-Lei 7.661/45 quanto a Lei 11.101/05, possuem único escopo em relação ao devedor sem condições de manter-se competidor, porquanto em crise patrimonial inarredável.
O objetivo é retirá-lo imediatamente do mercado – porquanto em crise patrimonial irremediável -, a fim de não criar prejuízo às demais “empresas” concorrentes, fornecedores, parceiros, funcionários, credores, Fisco e assim por diante.
Com a abertura judicial da falência retira-se o insolvente do mercado e preserva-se crédito público, em última análise.
Os Caminhos Que Poderão Ser Trilhados Pelo Devedor
Devidamente citado em ação que visa a retirada do mercado, o devedor poderá seguir alguns caminhos.
Nas hipóteses de impontualidade do devedor ou de execução frustrada [ausência de pagamento ou penhora de bens ] poderá o ele, no prazo improrrogável
de 10 [dez ] dias, depositar a quantia reclamada, com juros, correção monetária, despesas do processo e honorários de advogado, fixados pelo[a] magistrado[a].
Em ocorrendo tal hipótese, estará elidido o pedido de falência. Não mais há falar em falência do devedor.


Dito de outro modo, a falência não será decretada – o devedor permanecerá atuando no mercado – e haverá sentença de encerramento do processo.
É o que justamente se extrai da atenta leitura do artigo 98, parágrafo único da Lei 11.101/05.
Portanto, uma primeira conclusão poderia ser levada a efeito desde logo.
Tendo em vista o fato de que a própria lei própria confere ao devedor o direito de pagar (depositar) o valor da dívida em Juízo, a fim de evitar a falência, caberá ao credor instruir a inicial com a totalidade das cártulas e respectivos documentos.
Entende-se que, caso o espírito do credor seja, efetivamente, de noticiar a impontualidade do devedor em juízo e buscar a imediata retirada do agente econômico do mercado, pode [e deve] instruir corretamente sua petição inicial.
A juntada de pletora infindável de documentos há ser recebida com reservas, na medida em que pode [em tese, apenas] ser reveladora da tentativa de cobrança de dívida.
Basta, pois, a juntada de documentos mínimos tendentes à impontualidade do devedor, inclusive com a juntada do instrumento de protesto, tirado especialmente a tal fim, na hipótese do art. 94, inciso I.
Também pode, se for o caso, apresentar cópia da execução de título extrajudicial, comprovando a não indicação de bens à penhora; o não pagamento do valor pretendido ou o não depósito em juízo da coisa pretendida.
Caso o interesse do credor seja, efetivamente, o de retirar o devedor do mercado, interesse esse em harmonia com o espírito da lei, não carece juntar pletora de documentos.
Uma outra impropriedade técnica diz com o pedido para que ocorra a citação do devedor a fim de que pague no prazo de 10 [dez] dias a quantia reclamada, com os acréscimos previstos em lei.
Em sendo a petição inicial redigida nestes exatos termos, caberá ao juiz condutor do processo imediatamente determinar a intimação do autor a fim de que no prazo de 10 [dez] dias proceda à emenda à inicial [nos moldes do artigo 321 do Código de Processo Civil.
O pedido de falência, conforme exposto, não se presta à cobrança de dívida e completamente fora de técnica formular requerimento nestes termos, sendo que assim agir demonstra o desconhecimento acerca de qual é o verdadeiro propósito da lei, quanto ao devedor insolvente.
Ainda quanto ao posicionamento do devedor, poderá oferecer contestação; depositar o valor devido e concomitante contestar [em situação tal, a falência não será aberta]; dentro do prazo legal de 10 (dez) dias, requerer a recuperação judicial (art. 95, Lei 11.101/05).
O silêncio do devedor não raro ocorre, porquanto, concorda tacitamente com a abertura judicial da falência. concorda em se retirar do mercado, porque não reúne as mínimas condições de nele permanecer atuando.
Por fim, é uma possibilidade ao alcance do devedor concordar expressamente com sua retirada do mercado.
Neste caso, seu procurador judicial deve exibir poder especial em Juízo e concordar com os termos da ação (CPC, art. 389 e art. 390).
[1] A propósito, REsp. 136.565/RS – STJ, 4ª Turma, rel. Ministro Ruy Rosado de Aguiar, julgamento: 23/02/1999.
[2] Revocatória Falimentar, 3ª edição. Curitiba: Juruá Editora, 2005, p. 205.
[3] Sobre o interesse do Estado no processo de falência: D’AVACK, Carlo. La natura giuridica del falimento. Padova: Cedam Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1940. Diz o autor italiano nesta importante obra que o interesse estatal na falência não há de ser identificado na proteção do crédito público, alcançado na implementação do princípio par conditio ominium creditorum (igualdade de todos os credores pertencentes à mesma classe), mas sim na proteção do crédito público alcançado na imediata liquidação do agente econômico insolvente e pela consequente distribuição proporcional do produto da venda dos ativos aos credores. Acentua o mesmo autor que: Si giunge così alla soluzione che fra le varie accolte si presenta indiscutibilmente come la più logica, alla soluzione che presuppone una espropriazione coattiva dell’esercizio del diritto di azzione attiva e passiva operata dallo Stado contro i creditori e contro il debitori nel superiore interesse pubblico. Op. cit., p. 136.
[4] Em caso de inexistência de ativos arrecadáveis, cumpre ao administrador judicial observar a regra do art. 114-A, da Lei 11.101/05.