Incongruências da Lei 11101/05
Dando continuidade a texto publicado neste espaço em 29.10.2024, apresento mais algumas reflexões acadêmicas sobre os 20 (vinte) anos de vigência da Lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do agente econômico.
A Lei 11.101/05 – que trata da recuperação e da falência do empresário e da sociedade empresária -, completará 20 (vinte) anos de vigência no dia 09.06.2025. Sem dúvida, o texto legal significa avanço no que se refere ao tratamento da crise empresarial.
Por outro lado, a atualização do diploma legal ocorreu somente via Lei 14.112/2020. Há dispositivos em total desconformidade com o propósito legal, que é justamente incrementar meios jurídicos e econômicos visando a tentativa de superação da crise, considerada momentânea.
O escopo da Lei 11.101/05 é que ocorra, na medida do possível, a tentativa de superação da crise econômico-financeira e consequente preservação da atividade econômica organizada, mantença de postos de trabalho e preservação da empresa, e assim por diante.
É o que consta do art. 47 da referida lei.
A MUDANÇA DE PARADIGMA SOBRE A CRISE EMPRESARIAL
O Decreto-Lei 7.661/45 vigorou por praticamente 60 (sessenta) anos, sofrendo alterações pontuais. Tratava da concordata (preventiva e suspensiva da falência) e do instituto falimentar. Havia o espírito liquidatório-solutório, ou seja, buscava-se a venda dos ativos arrecadados no processo de falência e pagamento das dívidas.
Ainda, qualquer ato do devedor tendente a uma composição das dívidas poderia ser enquadrado como ato de falência (art. 2º, inc. III, do Dec.-Lei 7.661/45). Por assim agir, poderia ser aberta judicialmente a falência do “comerciante”.
Por outro lado, tendo em vista a forma de pagamento da dívida quirografária, não previa outras soluções visando a resolução da crise. Dito de outro modo, ao devedor caberia apenas e tão somente o depósito judicial dos débitos quirografários.
Tendo em vista a nova lei de 2005, foi colocado em degrau superior o ideário de soerguimento do devedor em crise, caso existam todas as condições para tanto. Portanto, incentiva-se que devedor e credores estejam na mesa de negociação visando o pagamento das dívidas e mantença da atividade econômica no mercado.
O norte da lei é justamente o contido no art. 47, sendo que o processo de falência está em segundo plano.
Caso não seja possível a reestruturação e saneamento do agente econômico mergulhado em crise (via institutos previstos na lei em comento ou outras tentativas de composição, de forma extrajudicial), a falência será a única solução.
Então, a lei busca incrementar a reestruturação da empresa e, não sendo possível, porquanto a crise é patrimonial irreversível, a falência deverá ser imediatamente aberta.
A retirada do devedor do mercado [espontânea ou compulsória], via falência, visa a preservar este mesmo mercado, evitar efeito multiplicador e principalmente preservação do crédito[1].
No mercado do sistema capitalista impera o caráter racional, a liberdade econômica e a livre concorrência, que são os pilares deste mercado. Este precisa de fluência, segurança e previsibilidade.
INCONGRUÊNCIAS DA LEI 11.101/05
São várias as incongruências da lei, mas este texto restringir-se-á ao exame de apenas e tão somente algumas questões relativas aos prazos legais, especialmente direcionados ao devedor em regime recuperatório e aos seus credores.
Ao final ficará demonstrado que a estrutura da Lei 11.101/05 não guarda qualquer coerência lógica, sendo que tal aspecto pode até mesmo colocar em risco, por assim dizer, o sucesso da reorganização judicial, com aprovação do plano e efetivo cumprimento, pelo devedor.
A decisão judicial que determina o regular processamento da recuperação judicial [art. 52][2] é uma das mais importantes proferida no âmbito do processo, abrindo-se ao devedor, quando de sua intimação, o prazo improrrogável de 60 [sessenta] dias para apresentar o plano de reorganização.
O devedor precisa cumprir tal prazo, sob pena de ser aberta a falência, por força do art. 53, bem como regra do art. 73, da Lei 11.101/05.

Tal documento – o plano de recuperação – se reveste da maior importância ao processo e determina, por assim dizer, o destino do devedor sob regime recuperatório.
A mesma decisão abre um horizonte aos credores: poderão requerer, a qualquer tempo, que o juiz convoque assembleia geral [art. 52, §2º], viando a constituição do Comitê de Credores ou substituição de seus membros.
Por outro lado, os credores poderão manifestar objeção ao plano do devedor no prazo de 30 (trinta) dias a partir da publicação da relação de credores (art. 7º, §2º), cabendo ao juiz convocar a assembleia geral.
Esta tem como escopo a deliberação a respeito do plano apresentado pelo devedor recuperando.
Deverá ocorrer, por força do art. 56, §1º, em até 150 [cento e cinquenta] dias, contados do deferimento do processamento da recuperação [note-se que aqui a lei não fala em publicação da decisão][3].
Pode ocorrer mais de uma assembleia de credores para deliberação sobre o plano, contanto que dentro de tal prazo.
Além disso, algumas medidas judiciais ajuizadas em face do agente econômico recuperando necessariamente serão suspensas por 180 [cento e oitenta] dias[4], por força do que dispõe o art. 6º, §4º, podendo os credores, após o decurso de tal prazo, a elas dar regular prosseguimento[5].
O restabelecimento do direito [concedido ao credor] de iniciar ou mesmo de dar regular continuidade as demandas, após o decurso do prazo legal, sem dúvida, causa ainda maiores transtornos ao devedor em crise e pode até mesmo desestabilizar o processo reorganizacional.
O prazo de suspensão [180 dias, prorrogável] de algumas ações não contribui para a tentativa de estancar a crise.
Nem sempre o recuperando, durante tal prazo, obterá êxito na negociação com os credores, objetivando aprovação de seu plano [tácita ou via assembleia geral].
Além da obrigação de propor e discutir seu plano com credores o recuperando terá ainda a árdua tarefa de tentar suspender as demandas não adstritas à recuperação judicial [ver art. 49, e seus parágrafos, v.g.].
De fato, o tempo [processual] não para. Os prazos são corridos e não em dias úteis.
Corre contra o devedor mergulhado em crise e que busca a tutela estatal para fins de se compor com o universo de credores [assinando um “contrato” com estes, e que se chama “plano de recuperação judicial”].
O recuperando, além de se ver diante de ações com regular curso, ainda precisará de várias habilidades – e pessoal técnico capacitado – para negociar seu plano de recuperação, tarefa efetivamente complexa, hercúlea, delicada e que nem sempre resulta positivamente ao devedor em crise.
Ingressando na verdadeira arena judicial assim denominada de recuperação judicial [e nesta terá indiscutível poder de barganha perante seus credores], o devedor tem [ou deveria ter] a firme convicção de que dela poderá sair vitorioso, com a aprovação [pelos credores] e consequente homologação judicial de seu plano.
O futuro do recuperando é uma verdadeira incógnita – considerando até mesmo as leis e regras de mercado competitivo; a reorganização judicial se traduz em tentativa de soerguimento, que depende sobremaneira da anuência de boa parcela dos credores.
Não se descuide, pois, de que o devedor poderá sofrer um sério e talvez irremediável aborrecimento: a decretação de sua falência[6], caso nesse sentido venha a ser deliberado em assembleia de credores [art. 73, inc. I].
Em tal hipótese – formulação de pedido de falência, pelos credores reunidos em assembleia[7] – o juiz condutor do processo pouco ou quase nada poderá fazer para que o devedor seja, a contragosto dos credores, mantido no mercado competitivo [regra do cram down, prevista no art. 58, §1º da lei de regência][8].
O provável caminho, quando da não aceitação do plano, será a decretação judicial da falência do recuperando e sua imediata retirada do mercado.
Intimado da decisão proferida no art. 52, o recuperando terá até 60 (sessenta) dias de improrrogável prazo para apresentar em juízo seu plano de reestruturação. Há de imprimir agilidade para que o prazo seja cumprido.
O recuperando precisará convencer os credores para que o plano seja aprovado em assembleia, ou tacitamente por eles acolhido (inexistindo nesta hipótese formal objeção ao plano, diante do silencio dos credores no prazo de 30 [trinta] dias).
Em caso de êxito do recuperando – concordância dos credores – ocorrerá a segunda decisão importante proferida no curso do processo, ou seja, a concessão da recuperação judicial [art. 58].
Tal decisão cria a ele, recuperando, um certo alívio, sem dúvida.
Passados os 180 dias [com eventual prorrogação] de suspensão das demandas os credores poderão dar prosseguimento regular às ações ou mesmo ajuizar outras tantas, tal como consta da lei[9].
Ao se optar pela ação de recuperação judicial, não há qualquer certeza de que haverá aceitação do plano reorganizacional ou mesmo de aprovação sem modificações por parte dos credores [com a anuência do devedor].
Existe o risco de convolação da recuperação judicial em falência[10], sendo que tal possibilidade decorre da própria lei de regência.
Nessa linha, quem de fato determina o futuro da sociedade empresária em crise, em última análise, é o mercado [no qual se inserem os credores do devedor comum], considerando o sistema capitalista de produção [economia de mercado[11]].
Em tempos globalizantes pós-modernos, esta é a realidade.
A abertura judicial da falência do devedor, sem dúvida, pode prejudicar até mesmo a própria sociedade como um todo, sociedade essa que tem interesse no sentido de que o agente econômico mergulhado crise momentânea retorne o quanto antes ao mercado competitivo.
Caso os credores não expressem [formal ou informal] anuência ao plano, discordando, pois da permanência do devedor no mercado, deverá ele ser afastado compulsoriamente, por mais que o juiz verifique no caso concreto uma [discutível, no âmbito da doutrina] função social da empresa e necessidade de sua preservação.
No que diz especificamente com os prazos aos quais estará adstrito o devedor, bem esclarece Eduardo Secchi Munhoz que:
se a assembleia geral não se realizar em 180 dias do deferimento do processamento da recuperação judicial, ainda que a falência não possa ser decretada (o plano não foi ‘rejeitado’), o devedor perderá uma das principais proteções que lhe são oferecidas pelo processo de recuperação judicial, qual seja, a suspensão das ações e execuções dos credores[12]
Diante de tais considerações e não olvidando dos demais prazos aqui especificados, nota-se claramente que o devedor em crise precisará contar com muita habilitante para lograr êxito na aprovação do plano de reestruturação em tão exíguo prazo de 180 dias [eventualmente prorrogável].
Ao completar 20 (vinte) anos no sistema jurídico pátrio, a Lei 11.101/05 ainda carece de ampla alteração, não apenas no que diz com os regimes recuperatórios, mas também vários aspectos relativos ao processo de falência.
[1] Conforme lição de Eros Grau, há necessidade de se observar, em relação ao mercado: previsibilidade, calculabilidade, regularidade, estabilidade, segurança, objetividade e constância. Por que tenho medos dos juízes: a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 7ª edição. São Paulo: Malheiros, 2106.
[2] E quando da análise da petição inicial o juiz não poderá decretar a falência do devedor, por força do art. 73, que estabelece as hipóteses específicas para a retirada do devedor do mercado. Entrementes, cabe ao juiz analisar se estão presentes no caso concreto: [i] os pressupostos processuais e as condições da ação e [ii] se a inicial cumpriu o art. 51 da lei de regência, bem como demais requisitos. O TJSP por sua Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais estabeleceu, via Súmula 56, que “na recuperação judicial, ao determinar a complementação da inicial, o juiz deve individualizar os elementos faltantes”. Contra a decisão que manda processar a recuperação judicial poderá o credor prejudicado ingressar com agravo de instrumento, estando afastada a Súmula 264 do STJ.
[3] Note-se que a lei não impõe qualquer sanção caso a assembleia deixe de ser realizada em tal prazo.
[4] O prazo pode ser prorrogado por igual período, uma só vez, de forma excepcional, contanto que o recuperando não tenha contribuído para o descumprimento do prazo. A lei de regência não se observou, por mera opção [política legislativa], o assim denominado automatic stay do sistema norte-americano. O único prejudicado pela não adoção de tal instituto na Lei 11.101/05 é o devedor em crise. Mas, esse prejuízo pode até mesmo ser estendido à própria sociedade como um todo. Para os credores, a não suspensão das demandas é medida que melhor se coaduna com seus particulares interesses. Portanto, a “pseudoproteção” concedida por lei ao devedor – suspensão de algumas demandas por 180 dias [prorrogável] – não colabora para a resolução da crise. Ora, se a lei norte-americana estende o automatic stay até o final do processo de reorganização, sendo que o devedor tem o prazo de 120 dias para juntar o plano [bem maior do que o da lei nacional], nada mais correto que a Lei 11.101/05 também suspendesse o curso de todas as demandas em que o recuperando seja acionado. Nos Estados Unidos admite-se, por outro lado, que o juiz, visando a proteção exclusiva dos interesses de determinados credores, afaste tal suspensão em determinado momento processual.
[5] Sem sombra de dúvida que o prosseguimento de tais execuções em face do recuperando poderá desestabilizar o próprio processo de reorganização judicial. É importante, por outro lado analisar a decisão proferida pelo STF no RE 583.955-9- Rio de Janeiro, com voto condutor do Min. Ricardo Lewandowski. Diz a regra do art. 6º. §4º-A, inc. II: As suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão por 180 (cento e oitenta) dias contados do final do prazo referido no § 4º deste artigo, ou da realização da assembleia-geral de credores referida no § 4º do art. 56 desta Lei, caso os credores apresentem plano alternativo no prazo referido no inciso I deste parágrafo ou no prazo referido no § 4º do art. 56 desta Lei.
[6] Prevalecendo, nesta hipótese, a preservação do mercado, afastando-se os particulares interesses do recuperando.
[7] Que não possui poder decisório, mas apenas deliberativo, tal como bem esclarece Luiz Inácio Vigil Neto na obra Teoria Falimentar e Regimes Recuperatórios: estudos sobre a Lei n. 11.101/05. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 12.
[8] Aprovar o plano de reorganização, mesmo que rejeitado em assembléia de credores.
[9] Não cabe aqui o exame das decisões dos tribunais a respeito da competência para a execução de julgados tendo como devedora a entidade recuperanda.
[10] Também não se descuide de que credores não sujeitos à recuperação judicial [art. 73, p. único da lei de regência] poderão requerer a falência do devedor, perante o mesmo juízo da reorganização [art. 6º, §8º].
[11] Alguns dos importantes papéis do Estado moderno são justamente [i] funcionar como garantidor do funcionamento do mercado [estabilidade da moeda nacional, livre concorrência, conforme art. 173, §4º da Constituição Federal; [ii] garantir o direito de propriedade e [iii] velar pelo cumprimento dos contratos juridicamente perfeitos, deixando que a economia flua, regulando as atividades econômicas que reputar relevantes [arts. 170 e 174 da Carta Política]. Entrementes, cabe a este mesmo Estado: [a] buscar a redução das desigualdades sociais [e se tais desigualdades são um dos grandes problemas que decorrem de tal economia de mercado, caberá ao Estado reduzi-las, dentro do possível]; [b] fornecer a infraestrutura básica, bem como, também dentro do possível, [c] amenizar os efeitos deletérios advindos dos momentos de crise econômica.
[12] SOUZA JUNIOR, Francisco S. de; PITOMBO, Antônio S. A. de M. [coord.]. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Lei 11.101/05 – Artigo por artigo. 2ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007,p. 273. Grifo constante do original.