ALGUNS APONTAMENTOS SOBRE O FRESH START NA FALÊNCIA
A falência, sob o aspecto econômico, é um fato patológico no desenvolvimento da economia credora: é o efeito do anormal funcionamento do crédito, conforme ensina Alfredo Rocco[1].
Estando em irreversível estado de insolvência, em crise patrimonial inarredável, o agente econômico deve(ria) requer sua retirada do mercado (mediante ação de autofalência), mesmo antes que outro legitimado tome a iniciativa.
De fato, caso assim proceda, o devedor preservará o próprio mercado no qual atua, evitando-se efeito multiplicador quanto a outros agentes econômicos, que também podem entrar em crise.
Não se pode colocar em risco o próprio crédito, gerando insegurança e instabilidade a quem atua no mercado competitivo.
Com a sentença de abertura da falência, retira-se juridicamente o devedor do mercado; há saneamento da atividade empresarial e preserva-se a segurança do crédito.
No processo de falência há o interesse público prevalente, considerando os vários efeitos decorrentes da cessação da atividade econômica.
Não seria necessário mergulhar a pena na tinta para esclarecer que nem sempre a insolvência do agente econômico – e sua consequente retirada do mercado, via falência -, decorre apenas e tão somente de má-administração dos gestores.
Há questões multiplicas que podem levar à abertura da falência de um agente econômico.
Fatores externos (locais, nacionais e internacionais) podem levar à crise patrimonial e consequente falência da entidade.
Um exemplo que pode ser citado é a recente crise sanitária mundial, onde não foram poucas as “empresas” que sucumbiram e fecharam as portas; faliram, foram retiradas do mercado.
Nessa linha, volatilidade cambial, eventos climáticos, controle financeiro deficiente, diminuição significativa das vendas, aumento de custo para produção e até mesmo a queda da produtividade, pode fazem com que seja ligado o sinal de alerta e os titulares da “empresa” devem agir, para evitar o pior: falência[2].
Algumas entidades, porque cumpriram todos os requisitos legais, ingressaram com ação de recuperação judicial ou buscaram arrimo na recuperação extrajudicial.
Por fim, nem sempre a crise econômico-financeira e patrimonial é instaurada em decorrência de atos equivocados dos gestores.
A recente crise sanitária mundial, conforme exposto, é bom exemplo para demonstrar que a falência pode ser aberta em virtude de vários fatores, nem sempre ligados aos titulares e gestores da “empresa”.
O FRESH START NA LEI ESTADUNIDENSE
A Lei 11.101/05 foi baseada na tradição jurídica de outros países (notadamente Estados Unidos e França, sendo que no regime jurídico sobre crise, deste país há outros mecanismos formidáveis de prevenção/alerta da crise, não albergados pelo texto nacional de 2005).
Para que se possa redigir uma lei sobre crise, lei essa consentânea com a realidade, faz-se necessário verificar as vicissitudes da entidade nacional [principalmente do pequeno agente econômico, da micro e pequena empresa].
Necessário perquirir a respeito de quais seriam os melhores caminhos que poderiam ser trilhados para, de fato, tentar o reerguimento, pagamento de todas as dívidas e efetivo retorno ao mercado competitivo[3].
Nem sempre a legislação de outros países se amolda perfeitamente à realidade da empresa que opera no Brasil.
No Capítulo 13, por exemplo, as pessoas podem salvar suas casas em execução hipotecária, interrompendo o processo, sob determinadas condições.
Para se valer de tal capítulo, o devedor há de possuir renda regular e devem desenvolver plano para pagamento de todo o passivo.
Apresenta-se tal plano para pagamento parcelado entre três e cinco anos[4] [5].
Registrando a petição, via formulário, há nomeação de administrador, que ficará à frente do caso.
Ao apresentar a petição, a maioria das ações de cobrança em face do devedor restará automaticamente suspensa (stay period), traduzindo-se, tal período, em uma espécie de proteção ao devedor, a fim de que tenha fôlego e possa se reestruturar..
Determinadas medidas não se sujeitam ao procedimento. A suspensão decorre da lei e não de decisão judicial e ocorre enquanto perdurar o processo.
Em decorrência, aos credores é vedada a continuação ou ajuizamento de ações e até mesmo são inibidos de fazer ligações telefônicas exigindo o pagamento da dívida.
De uma forma ou de outra, o processo se torna uma arena, onde impera o poder de barganha do devedor[6], ou, um jogo de interesses entre credores e este, mediante uso de estratégias especulativas, a fim de que haja sucesso ao que está mergulhado em dívidas[7].
O FRESH START NA LEI BRASILEIRA
A adoção do instituto assim denominado de “fresh start – em livre tradução, “um novo começo”[8] -, no art. 158 da Lei 11.101/05[9], que trata da extinção das obrigações da entidade falida, não pode ser considerada como um reinício a todos os que se submeteram ao regime falimentar.
Diz a lei que há de se fomentar o empreendedorismo [art. 75, inc. III) e viabilizar o retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.
Por óbvio ululante, o texto legal comporta interpretação lógica, teleológica e sistema, como será exposto no decorrer.
Em primeiro lugar, a ideia de empreender decorrer da livre iniciativa, de cunho eminentemente constitucional [CF, art. 170, caput].
O Estado fomenta o empreendedorismo e aqueles que se julgam habilitados a constituir um ente jurídico sabem (ou deveriam saber) que há riscos no empreender, atuar no mercado.
Mas, esse ideário de empreender e gerar lucros, a rigor, não se destina a falido [pessoa jurídica], que já foi retirado do mercado competitivo.
Quanto ao retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica, inexiste qualquer impedimento, por exemplo, que sócio/acionista de entidade falida se torne sócio/acionista de outra entidade empresária.
Afinal, via de regra, falida é tão somente a entidade jurídica da qual faziam parte.
A diminuição do lapso temporal para extinção das obrigações, a contar da sentença de abertura da falência, independentemente de trânsito em julgado (a lei não diz ao contrário – art. 158, inc. V) é um formidável incentivo ao novo empreender, sem dúvida; é um virar a página e reiniciar alguma atividade econômica, com fim lucrativo[10].
Afinal, o fracasso de determinada atividade econômica não significa, necessariamente que os gestores continuarão na mesma toada.
Estimula-se que se retorne rapidamente ao mercado competitivo, deixando o montante da dívida no âmbito do processo falimentar.
É uma boa forma de (tentativa de) reabilitação, mas isso independe da qualificação técnico-profissional de quem pretende uma nova chance de empreender e muito menos se perquire a respeito da boa ou má-fé dos titulares da nova pessoa jurídica.
O escopo da lei é que se exercite, se o quiser, o direito de novo empreendimento perante o mercado, correndo os mesmos riscos de antes.
QUEM SE PODE VALER DO FRESH START NA FALÊNCIA
Estabelece o art. 75, inc. III, que cabe fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.
O texto legal, assim como todos os demais dispositivos, comporta interpretação lógica, teleológica e sistemática.
A pessoa jurídica, cuja falência é decretada judicialmente, não perde de imediato a personalidade jurídica e, de igual forma, não se dissolve neste momento processual.
É de se esclarecer que o presente trata do caso em que não haja a desconstituição[11] da sentença que decretou a abertura da falência.
O senso comum teórico é no errôneo sentido de que a abertura judicial da falência se traduz em causa para o imediato enceramento da pessoa jurídica que foi retirada do mercado, via sentença.
Nessa linha, o art. 1044 do Código Civil há de ser interpretado pelo exegeta sob os métodos lógico, teleológico e sistemático, a fim de se buscar o real sentido e alcance do dispositivo legal. Inexoravelmente, cabe observância do ordenamento jurídico como um todo.
Hermeneuticamente, não se interpreta um enunciado legal de forma isolada.
A dissolução da pessoa jurídica não significa necessariamente sua imediata extinção.
Apenas e tão somente inicia o procedimento liquidatório societário para somente depois, se for o caso, extingui-la.
A extinção da entidade jurídica, enfatize-se, ocorre após encerrada a fase de liquidação.
O art. 51 do Código Civil estabelece que o ente subsiste para fins de liquidação (apenas) até a conclusão desta.
No caso de falência decretada, eventual saldo, apurado em decorrência da venda de todos os ativos, será divido entre os sócios da pessoa jurídica, guardadas as devidas proporções previstas em contrato social ou estatuto.
Encerrada esta fase liquidatória, aí sim cancela-se a inscrição da jurídica no lugar próprio (Receita Federal etc.).
Portanto, no caso da falência de pessoa jurídica, a sentença de abertura da falência dá ensejo à liquidação de ativos arrecadados.
Superada esta fase, encerra-se o processo falimentar, por sentença, e, concomitantemente extinta estará a entidade jurídica.
Nessa linha, ao contrário do que se possa imaginar, a dissolução societária não ocorre de forma concomitante à sentença proferida na falência.
É suspensa a personalidade jurídica da entidade até que ocorra a completa liquidação (venda judicial) dos ativos arrecadados (realização do ativo) e encerrado, por sentença, o processo falimentar (art. 156, Lei 11.101/05).
A extinção da sociedade empresária, por consequência, ocorrerá quando do encerramento do feito falimentar.
Quer-se crer que, ingressando a falência na fase liquidatória haverá sérios indícios de que a pessoa jurídica, efetivamente, será encerrada.
De fato, a abertura judicial da falência é motivo ensejador à dissolução societária, mas esta poderá ser interrompida com o que se denomina comumente de “levantamento da falência” – tema para outro ensaio.
A fase liquidatória, por exemplo, pode não ser instaurada (não liquidação de ativos arrecadados), considerando o pagamento integral do passivo do falido e da massa falida.
É pertinente transcrever o pensamento de Rubens Requião:
A sociedade comercial nem sempre se dissolve com a declaração de sua falência. A falência, como de resto a dissolução social, não extingue a personalidade jurídica da sociedade; mas enquanto a liquidação, que sobrevém à dissolução, mantém a sociedade em posição estática, vivendo apenas para a liquidação do ativo e pagamento do passivo, não se envolvendo em operações novas, durante o processo de falência, a sociedade continua viva, pois pode inclusive prosseguir no comércio se assim requerer e o juiz consentir. Aqui perde ela, como todos sabem, apenas a administração de seu patrimônio; mas poderá retomar à plena capacidade de disposição de seus bens, se obtiver a concordata suspensiva da falência, que lhe restituirá toda a plenitude de seus direitos e obrigações. Se não ocorrer tal hipótese, só então a falência resulta na completa extinção da sociedade[12]
A extinção das obrigações não significa fresh start à pessoa jurídica, porquanto a reabilitação é tão somente de empresários individuais de responsabilidade ilimitada ou sócios de responsabilidade ilimitada.
Nessa linha, as sociedades empresárias que submeteram ao regime falimentar (sociedade limitada, sociedade anônima fechada ou aberta e assim por diante), serão encerradas, dadas as peculiaridades antes expostas.
Em resumo, o fresh start não beneficia a pessoa jurídica falida – porquanto encerrada -, mas, pode ser formidável a um sócio de responsabilidade ilimitada – figura jurídica essa, aliás, tendente ao desaparecimento – que visa a reingressar no mercado competitivo.
Na memória de muitos credores infelizmente permanece o estigma de “falido”, qual era na época de Roma[13].
Tal pensar – senso comum – se traduz em inexorável equívoco.
[1] Apud – SAMPAIO DE LACERDA, J. C. Manual de direito falimentar. 2ª edição. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1961, p. 13.
[2] Não se pode concordar completamente com a assertiva de François Rigaux, no sentido de que nas nossas sociedades, em que os que sabem fazem a lei para os que sabem menos… [A Lei dos Juízes. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XI], porquanto denota-se que a atual lei, além de deficiências quanto ao seu teor, prejudica os microempresários e as empresas de pequeno porte, especialmente em tempos sombrios, de crise sanitária mundial. A abertura judicial de falências vem ocorrendo, não descuidando do fechamento das portas, sem indispensável baixa nos registros empresariais. Durante a pandemia, foram várias as falências decretadas, e isso significa desemprego, não recolhimento de tributos, ausência de disputa por mercado e assim por diante. Há evidente diferença entre conhecimento e sabedoria. Esta contempla muito mais que repertório de informações, qual se vê por aí. A propósito: Não diga que você leu muitos livros. Mostre que, por meio deles, você aprendeu a pensar melhor, a ser uma pessoa mais perspicaz e ponderada. Os livros são para a mente o que os pesos da ginástica são para o corpo. Os livros são muito úteis, mas seria um grave erro supor que alguém progrediu apenas por conhecer o seu conteúdo [Epicteto].
[3] Não se descuide que a Lei 11.101/05 busca conferir segurança jurídica aos detentores do capital, com a preservação das garantias e normas precisas sobre a ordem de classificação de crédito na falência, a fim de que se incentive a aplicação de recursos financeiros a custo menor nas atividades produtivas, com o objetivo de estimular o crescimento econômico. Parecer n. 534 de 2004, sobre o PLC 71/03. Ver: CLARO, Carlos R. Revocatória Falimentar. 4a edição. Curitiba: Juruá, 2008; https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=580933. Acesso: 06/05/2021. Cabe relembrar o pensamento de Michel Villey: Como justificar o poder das leis positivas? Impossível recorrermos aos ‘mitos’ do direito divino dos príncipes, do contrato social, aos fantasmas ideológicos da soberania popular da ‘vontade geral’, da representação do povo pelos deputados – já que hoje pretende-se que as leis provenham de nossos deputados… Filosofia do Direito. Definições e Fins do Direito. Os Meios do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 433. Grifos constantes do original.
[4] Cabe-lhe apresentar a lista de ativos [que engloba todos os seus bens] e passivos [nomes dos credores, valores e natureza dos débitos], cronograma de receitas [fonte, valor e frequência da receita] e despesas atuais [lista detalhada das despesas mensais, tais como alimentos, roupas, abrigo, serviços públicos, tributos, transportes etc.], cronograma de contratos e de arrendamentos não vencidos, cópia da declaração de imposto ou transcrições do ano fiscal mais recente e assim agir durante a tramitação do processo, dentre outras exigências legais. Os cônjuges podem apresentar conjunta petição ou individual, tudo via formulário oficial de falência, ao contrário do sistema pátrio. O devedor precisa pagar taxas.
[5] Neste tipo de procedimento, resta comprometida a renda futura do devedor, mas preserva-se seu patrimônio. O fresh start possibilita a que o devedor permaneça com seus bens.
[6] CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009; DELANEY, Kevin J. Strategic bankruptcy: how corporations and creditors use Chapter 11 to their advantage. California: University of California Press, 1998.
[7] A propósito, bem assevera Delaney: Since the original publication of ‘Strategic Bankruptcy’ in 1992 I have become more convinced that bankruptcy is really politics by another name. Many Americans who never thought they would care about corporate bankruptcy found themselves unwitting parties to the complex process of Chapter 11 reorganization in the 1980s and 1990s. The bankruptcy arena, formerly the province of bankers, financial managers, and their attorneys, became the arena in which some of the biggest social issues of our time were decided: the fate of asbestos victims and compensation to women injured by the Dalkon Shield intrauterine device and those suffering ill health after receiving silicone implants. Op. cit., ix. Grifos no original. No meu livro, aqui citado, bem detalho vários aspectos acerca da arena mencionada por Delaney.
[8] O Brasil aprecia a importação de institutos jurídicos – não raro distantes da realidade empresarial -, notadamente os norte-americanos previstos no Bankruptcy Code de 1978.
[9] Relação direta com o art. 75, inc. III do mesmo diploma legal. Ora, se antes da reforma o decurso do prazo se iniciava a contar do encerramento da falência, a nova redação é no sentido de que é contado da abertura judicial, independentemente de trânsito em julgado. A redução drástica de dez e de cinco anos para apenas três anos, a contar da sentença de falência é excelente para o falido, para a entidade falida e seus sócios/acionistas. Em resumo, pela lei, o “novo” empreendedor pode voltar ao mercado competitivo rapidamente, bastando aguardar três anos, observados todos os requisitos legais. De fato, talvez mereçam nova chance, sem descuidar que desoneram-se os débitos constantes da falência [interpretação do art. 158, inc. II, que pressupõe o pagamento dos créditos extraconcursais e os precedentes aos quirografários].
[10] O texto legal que prevê a venda judicial dos ativos em até 180 dias, a contar da juntada do auto de arrecadação no processo [art. 22, inc. III, letra “j”], sob pena de destituição do administrador judicial, é algo surreal e entra em choque, por exemplo, com o art. 114 e art. 119, inc. VII.
[11] Termo utilizado por Pontes de Miranda. Cf. Tomo XXVIII de seu Tratado de direito privado.
[12] Curso de direito comercial. 2º volume. São Paulo: Saraiva, 1985, pp. 274-275. O texto legal de 2005 não mais prevê o instituto da concordata preventiva (Dec.-Lei 7.661/45, art. 177).
[13] Nos Estados Unidos, onde há sistema jurídico mais avançado, quanto a crise empresarial, qualquer pessoa pode recomeçar a vida e lá o devedor não carrega o estigma de alguém marginalizado, fora sociedade, ostentando o rótulo de fraudulento ou de mau pagador, ao contrário do que ocorre no Brasil.