Deepening Insolvency e Autofalência
Já escrevi neste espaço alguns artigos sobre a autofalência, que ocorre quando há crise patrimonial inarredável e existe a necessidade de retirar o devedor do mercado.
Neste ensaio, gostaria de aprofundar mais a questão, no campo teórico, tratando da obrigatoriedade da ação de autofalência, por parte dos gestores empresariais, bem como as responsabilidades civis decorrentes pelo não agir em Juízo.
A doutrina estadunidense criou o conceito – não previsto nos diplomas legais brasileiros – o conceito de deepening insolvency, o qual será tratado no decorrer.
O agravamento do estado de insolvência do agente econômico e a não rápida adoção de medidas previstas em lei – a exemplo do instituto da recuperação ou a autofalência – em tese, pode acarretar a responsabilidade dos administradores, inclusive pelos danos causados aos credores.
Manter a atividade econômica no mercado quando se tem inequívoca ciência do estado deficitário, da crise patrimonial irreversível, pode levar à responsabilização dos que têm poder de gestão.
A LEI 11.101/05 E A RECUPERAÇÃO DO AGENTE ECONÔMICO EM CRISE ECONÔMICO-FINANCEIRA
A Lei 11.101/05 alterou completamente o foco em relação à crise empresarial.
Na vigência do Decreto-Lei 7.661/45 os direitos dos credores eram colocados em degrau superior, porquanto a lei exigia o depósito em dinheiro dos valores devidos (Dec.-Lei 7.661/45, art. 156).
No tocante ao processo de falência escopo era o liquidatório-solutório.
Por outro lado, o instituto da concorda (preventiva ou suspensiva) não passava pelo crivo dos credores, porquanto, preenchidos todos os requisitos legais, via de regra, a concorda era concedida judicialmente.
O norte da lei quanto ao tratamento da crise da empresa foi completamente alterado em 2005, porquanto se reconhece a necessidade de preservação do agente econômico, na medida do possível, bem como a solução harmoniosa da crise.
Ainda, procura-se conciliar os múltiplos interesses e direitos envolvidos, em especial na recuperação da empresa.
Já assentei em obra que a recuperação judicial é uma arena, onde se encontram devedor e credores, qual se vê no sistema legal estadunidense.
A Lei 11.101/05 tem outra diretriz e visa a conjugar os direitos/interesses do devedor e os direitos/interesses dos credores.
O texto legal de 2005 visa primeiramente a tentativa de saneamento e reestruturação do agente econômico e mantença no mercado.
Por outro lado, não se olvida dos direitos e interesses dos credores, visando principalmente a preservação do crédito.
Caso haja inarredável crise patrimonial, não resta outra medida a ser adotada: a cessão da atividade econômica e a retirada do devedor do mercado, via processo falimentar.
Destaque-se que manter a atuação do devedor, como se crise patrimonial evidente não houvesse, tendo como norte – na visão dos gestores – a necessidade de continuação da atividade empresária, é simplesmente criar efeito multiplicador em relação a outras entidades que atuam no mercado competitivo.
Prolongar artificialmente a vida de um agente econômico, mantendo-se-o no mercado, é criar riscos, inclusive de segurança e previsibilidade de comportamento; é permitir que desajustes continuem ocorrendo e medidas errôneas sejam praticadas, em prejuízo de colaboradores, parceiros, credores, e da sociedade, em última análise.
Há de se ter em mente a necessidade de preservação do crédito público e estabilidade do mercado, que visa a constância, estabilidade, regularidade e segurança.
Detectada a crise patrimonial inarredável – não sendo possível manter o agente econômico no mercado -, o Estado passa a ter interesse na imediata liquidação da “empresa”.
Os gestores empresariais devem (ou deveriam) estar atentos aos sinais de alerta, que indicam a crise, seja ela econômico-financeira (e neste caso, em tese, pode-se tentar a reestruturação), seja ela patrimonial, que indica a insolvência.
A inércia ou mesmo a prática de atos dissonantes da realidade, pode gerar responsabilização civil.
A mantença artificial de agente econômico no mercado, que é inviável, tendo como lema a preservação da empresa a fim de que cumpria sua função social, não guarda qualquer consonância com o escopo da Lei 11.101/05.
O ESTADO E A FALÊNCIA DO DEVEDOR
O Estado tem interesse em retirar do mundo econômico a “empresa” deficitária, que não reúne mínimas condições para continuar exercendo a atividade e atuar no mercado competitivo.
Objetiva-se a imediata realocação de ativos do devedor na economia, nos precisos termos do art. 75, inc. II, da Lei 11.101/05.
O exercício da atividade econômica de “empresa” deficitária prejudica o crédito público, em última análise[1]; a atividade daquela empresa que é inviável pode criar insegurança em relação a todos os que atuam no mercado competitivo.
Não pode(ria) ocorrer a continuidade regular de operações do agente econômico deficitário – de fato, falido -, ou seja, a atividade que comprometa de alguma forma o crédito público e a necessária circulação de bens.
Compete ao Estado-juiz, analisado o caso concreto, retirar do devedor do mercado, caso presentes todos os pressupostos autorizadores.
Tanto o ab-rogado Decreto-Lei 7.661/45 quanto a Lei 11.101/05, possuem único escopo em relação ao devedor sem condições de manter-se competidor, porquanto em crise patrimonial inarredável.
O objetivo é retirá-lo imediatamente do mercado – porquanto em crise patrimonial irremediável -, a fim de não criar prejuízo às demais “empresas” concorrentes, fornecedores, parceiros, funcionários, credores, o Fisco e assim por diante.
Com a abertura judicial da falência retira-se o agente econômico insolvente do mercado e preserva-se crédito público, em última análise.
Escreve o jurista italiano Carlo D’Avack:
Nella dichiarazione di falllimento lo stato di cessazione è uno stato di fato che non produce alcun effetto giuiridco fino a quando il giudice con un accertamento constitutivo non abbia transformato questo stato di fato in stato di diritto, non abbia transformato cioè lo stato di cessazione in stato di falimento
(op. cit., p. 81)
A AUTOFALÊNCIA DO DEVEDOR EM CRISE PATRIMOMIAL
Ao contrário do Decreto-Lei 7.661/45, a Lei 11.101/05 não estabelece o prazo de 30 (trinta) dias – a partir do vencimento de obrigação líquida – para o devedor confessar seu estado deficitário de caráter irreversível e ajuizar a ação de autofalência.
Não obstante conste o termo “deverá” requerer sua falência [caput do art. 105], a lei também não estabelece qualquer sanção se o devedor em crise patrimonial deixar de distribuir tal ação.
Apesar de a lei se utilizar do verbo “dever” (ou seja “deverá”, no futuro do indicativo, terceira pessoa do singular), o devedor não tem a obrigação de ajuizar a autofalência.
Nessa linha, a jurisprudência é no sentido de que, efetivamente, o pedido de autofalência se traduz em mera faculdade e não dever legal.
A lei não prevê sanção se o não fizer no referido prazo, conforme dito. Trata-se de uma faculdade do devedor em crise patrimonial[2].
Entretanto, ao que se nos parece, salvo entendimento mais abalizado, aquele que exerce atividade econômica e se vê em irremediável crise patrimonial – está falido de fato -, deveria imediatamente ajuizar a autofalência, demonstrando sua boa-fé em Juízo.
Assim agindo, imediatamente ao primeiro sinal de crise patrimonial inarredável, o devedor certamente evita que mais prejuízos advenham aos credores e à própria sociedade, em última análise.
O vocábulo “deverá”, contido no art. 105, da Lei 11.101/05, traduz, salvo engano, a ideia de dever de imediata confissão judicial da crise patrimonial e consequente autofalência, mesmo que não seja cumprido em 30 (trinta) dias, qual constava do Decreto-Lei 76.661/45.
DEEPENING INSOLVENCY
A Teoria Deepening Insolvency, oriundo do direito estadunidense, se caracteriza pelo prolongamento indevido e artificial da empresa, que se vêm mergulhada em crise.
Levando-se em consideração determinados dispositivos legais, a referida teoria pode ser aplicada no Brasil.
Conforme doutrina, a Teoria se traduz em exceção à ideia de continuidade da atividade econômica organizada, à continuidade da existência da empresa, porquanto o exercício de tal atividade é irregular, artificial, dissonante da realidade.
O aprofundamento da crise, quando os gestores da empresa têm ciência dos fatos, é motivo bastante para utilização de tal teoria.
Neste exato sentido, postergar a abertura judicial da falência, ou mesmo, não tomar medidas para que se busque a solução global dos problemas, mediante utilização dos mecanismos de tentativa de soerguimento previstos na Lei 11.101/05, pode ensejar a responsabilização civil dos gestores que contribuíram, de forma omissiva ou comissiva, pela mantença de empresa inviável.
Dito de outro modo, permitir o agravamento da crise econômico-financeira, ou mesmo de caráter patrimonial, sem a prática de atos tendentes à solução da crise, pode ensejar responsabilização pessoal.
Conforme exposto, a inércia ou a prática de atos equivocados, prejudiciais e imbuídos de má-fé, podem ensejar responsabilização civil do administrador.
Aí entra, por exemplo, a regra do art. 82, da Lei 11.101/05.
A artificial mantença da atividade econômica no mercado, conforme já foi exposto, pode ocasionar ainda maiores prejuízos aos credores; danos à própria empresa e seus colaboradores, assim como desestabilizar o mercado.
Em tese, a deepening insolvency pode estar atrelada à fraude perpetrada por gestores, que visam a mantença artificial da empresa, com objetivos variados.
O não ajuizamento de autofalência, por exemplo, pode dar ensejo à responsabilização daqueles que deveriam agir e quedaram inertes, em prejuízo do próprio agente em crise.
Nessa esteira, os que deixam de se valer de outros mecanismos jurídico-econômicos tendentes à solução global da crise – recuperação judicial ou extrajudicial, bem como outros meios legais – em tese, também podem ser responsabilizados na esfera cível.
Por outro lado, os prejuízos aos credores, aos funcionários etc., podem estar diretamente ligados à prática de atos que visam o irregular prolongamento da atividade que, de fato, se encontra em estado de insolvência.
Demais, caso os administradores tenham ciência de que as dívidas da empresa sejam impagáveis – há crise patrimonial e os ativos são insuficientes para honras as obrigações -, por exemplo, e continuam assinando mais empréstimos bancários, oferecendo bens em garantia, poderá advir responsabilização pessoal, em decorrência de ato prejudicial à pessoa jurídica.
A utilização de artifícios para redução do patrimônio da empresa, visando fraude aos credores, também é um exemplo onde a responsabilização pessoal poderá ser apurada, observados, quanto a defesa, os princípios constitucionais aplicáveis.
Nessa esteira, contrair financiamentos totalmente desnecessários à atividade econômica pode significar, em tese, desvio de contudo do administrador, ensejando responsabilidade civil na esfera pessoal.
A tomada de decisões negligentes, de má-fé ou mesmo equivocadas, em prejuízo da própria pessoa jurídica, é indicativo de que poderá haver demanda judicial tendente à verificação de responsabilidade civil.
Quanto a responsabilidade civil, aplicável a regra do at. 927 do Código Civil, ou seja, a responsabilidade civil é subjetiva, cabendo averiguar no caso específico se presentes os seguintes pressupostos: conduta omissiva ou comissiva, dano [patrimonial ou extrapatrimonial], nexo causal [entre conduta e resultado] e culpa do agente.
LEI 6.404/76 E DISPOSITIVOS LEGAIS APLICÁVEIS
Inicialmente, conforme regra do art. 153, da Lei 6.404/76, o administrador da companhia (aberta ou fechada) há de ter o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios.
Os administradores da empresa poderão ser responsabilizados pessoalmente por prejuízos causados em decorrência, por exemplo, da não observância dos devedores previstos em lei.
A Lei 6.404/76, prestes a completar cinquenta anos no ordenamento jurídico pátrio, contém determinados dispositivos que se aplicam ao estudo.
Destaque-se que a violação do dever de diligência (art. 153, já citado), sigilo (art. 155, §4º) e lealdade (art. 155), pode ensejar responsabilização pessoal.
Observe-se a regra 158, incisos I e II, quanto a responsabilização pessoal e se não descuida do contido no art. 159, §6º [business judgment rule].
O tema é vasto e será objeto de escritos mais aprofundados, oportunamente.
[1] Sobre o interesse do Estado na falência: D’AVACK, Carlo. La natura giuridica del falimento. Padova: Cedam Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1940. Diz o autor, na importante obra, que o interesse estatal na falência não há de ser identificado na proteção do crédito público, alcançado na implementação do princípio par conditio ominium creditorum (igualdade dos credores pertencentes à mesma classe), mas sim na proteção do crédito público alcançado na imediata liquidação do agente econômico insolvente e pela consequente distribuição proporcional do produto da venda dos ativos aos credores. Acentua o mesmo autor que: Si giunge così alla soluzione che fra le varie accolte si presenta indiscutibilmente come la più logica, alla soluzione che presuppone una espropriazione coattiva dell’esercizio del diritto di azzione attiva e passiva operata dallo Stado contro i creditori e contro il debitori nel superiore interesse pubblico. Op. cit., p. 137.
[2] Não importa se há um ou vários credores para fins de formalização do pedido de autofalência. Outra questão relevante: pode o devedor, não impontual e insolvente, requerer a autofalência? Dito de outro modo, no caso de ainda não ter deixado de pagar determinada dívida, no vencimento, poderia o devedor se antecipar e requerer a autofalência? Crê-se que sim, sem dúvida. Isso demonstra a boa-fé. O devedor poder ser insolvente e pontual. Não se acredita que, no caso concreto, o magistrado determinaria que se aguardasse o vencimento da obrigação, o não pagamento, para só depois abrir a falência. Basta a confissão do devedor de que se não pode reorganizar e permanecer no mercado. O texto da lei é no sentido de que, todo aquele que estiver em crise e se não possa valer da reestruturação judicial ou extrajudicial, deve requerer autofalência.



