O Estigma de Falido
No tempo da Roma Antiga, as obrigações contraídas pelo devedor eram respondidas inclusive por servidão deste, pelo prazo de 60 (sessenta) dias, caso inexistisse o efetivo pagamento; o devedor poderia ser vendido como escravo.
Mais tarde a Lex Julia Bonorum (737 a.C.) estabelecia que o devedor poderia ceder seus bens aos credores e estes poderiam vende-los separadamente, visando a satisfação da dívida[1].
Houve significativa evolução do instituto falimentar e a civilização chegou ao século XXI, mas a falência ainda é vista com certas reservas.
Os tempos pós-modernos são outros.
Porém, ainda parece haver um certo estigma quanto ao falido.
Este pequeno texto apresentará algumas questões a respeito do estigma da falência.
Crise Patrimonial Irreversível e a Obrigação de Requerer Autofalência
O vocábulo “crise” exprime a ideia de dificuldade, desajuste, desequilíbrio.
A crise patrimonial é ligada aos ativos da empresa, que são insuficientes para honrar as obrigações livremente assumidas.
Quando o agente econômico possui mais dívidas que bens (patrimônio), o sinal de crise é agudo, acentuado e requer providências, até mesmo o imediato pedido de abertura judicial da assim denominada autofalência (Lei 11.101/05, art. 105).

Em tal caso, parece que a insolvência está acentuada, porquanto o passivo da entidade é maior que o patrimônio.
Nesta particular situação, porque inexiste possibilidade de reestruturação e inexiste viabilidade econômica, o devedor, em tese, não poderá se valer dos meios recuperatórios previstos na Lei 11.101/05 e deveria ajuizar a autofalência.
O estado é de insolvência e cabe a retirada do mercado.
Quando há o primeiro sinal de alerta, há de se fazer a seguinte indagação: existe a possiblidade de reversão/sanabilidade da crise vivenciada?
Caso a resposta seja negativa, caso será de requerer a abertura judicial da falência.
Os titulares da pessoa jurídica devem(riam) desenvolver a capacidade de antecipação, ao primeiro sinal de crise, e agir, evitando a decretação da falência.
Não havendo possibilidade de superação da crise, é se retirar o agente econômico do mercado.
Por fim, é de se ponderar que nem sempre a crise patrimonial ocorre em decorrência de atos omissivos ou comissivos dos titulares da empresa.
Não cabe gastar tinta para dizer que a crise sanitária mundial ocasionou a falência de muitos agentes econômicos. Há inúmeros outros fatores externos à empresa que podem conduzi-la ao processo falimentar.
A Lei 11.101/05 e as Questões Sobre Falência
Pode-se afirmar que a Lei 11.101/05, que trata da recuperação e falência do empresário e da sociedade empresária, representa grande avanço quanto ao tratamento da crise da empresa.
Não bastasse, a reforma ocorrida via Lei 14.112/2020 trouxe nova visão a respeito da liquidação célere das atividades econômicas inviáveis, fazendo como que haja realocação dos recursos advindos da alienação judicial de bens na economia de mercado.
Ainda, a lei visa a fomentar o empreendedorismo, possibilitando (em tese), o retorno do empreendedor falido à atividade econômica.
Quanto a este particular aspecto, a Lei 11.101/05 importou do sistema estadunidense, o “fresh start” [“um novo começo”]. Em poucas palavras, busca-se fazer com que o falido retorne ao mercado tão logo seja possível.
Contanto que não exista hipótese impeditiva prevista em lei, as obrigações do falido poderão ser encerradas conforme regras previstas no art. 158 da Lei 11.101/05.


A diminuição do lapso temporal para extinção das obrigações do falido, a contar da sentença de abertura judicial da falência, independentemente de trânsito em julgado (a lei não diz ao contrário – art. 158, inc. V) é um avanço.
É, sem dúvida, um certo benefício ao devedor falido, que pode retornar ao mercado, após a extinção das obrigações {Lei 11.101/05, arts. 159 e 160].
Ora, se antes da reforma o decurso do prazo se iniciava a contar do encerramento da falência, a nova redação de 2020 é no sentido de que é contado da abertura judicial, independentemente de trânsito em julgado.
A redução drástica de dez e de cinco anos para apenas três anos, a contar da sentença de falência é excelente para o falido, para a entidade falida e seus sócios/acionistas.
Em resumo, pela lei, o “novo” empreendedor pode voltar ao mercado competitivo rapidamente, bastando aguardar três anos, observados os requisitos legais.
De fato, quiçá mereçam nova chance de recomeçar a empreender, decorrido o lapso temporal previsto no art. 158, inc. V, da Lei 11.101/05, por exemplo, prazo esse que começa a contar da abertura judicial da falência.
A regra prevista no art. 158, inc. II, da mesma lei, merece especial atenção, justamente porque pressupõe o pagamento dos créditos extraconcursais [dívidas pós-falência], bem como, quanto aos concursais (dívidas da falida), os créditos trabalhistas, os com garantia real e os tributários.
Após, cabe demonstrar o pagamento de 25% dos créditos quirografários
Um Novo Recomeço
A Lei 11.101/05 afastou o caráter punitivo, o caráter liquidatório-solutório e o interesse exclusivo dos credores, prevista no Decreto-Lei 7.661/45. Agora a visão é global.
Em caso de insucesso da empresa, caso é de se retirá-la do mercado o quanto antes, visando inclusive efeito multiplicador da crise.
Por outro lado, a lei fomento a empreendorismo, o começar de novo; o novo fôlego.
Busca o célere retorno do empreendedor falido à atividade econômica e atuação no mercado competitivo, que possui regras próprias.
Há um novo paradigma advindo da Lei 11.101/05, que é justamente a possibilidade de um novo empreender.
Diante deste novo paradigma, é de se afastar, definitivamente, a ideia de que o falido não pode voltar ao mercado competitivo. A Lei 11.101/05, em seu art. 75, inc. III, fomenta o novo empreendedorismo.
[1] Sobre tema: AZZOLINA, Umberto. Il falimento e le altre procedure concursali. Seconda edizione. Torino: Unione tipografia-Editrice Torinese, 1961; DE SEMO, Giorgio. Diritto Fallimentare. Quinta Edizione. Padova: CEDAM – Casa Editrice Dott. Antonio Milani, 1968; RAMELLA, Agostino. Trattato del Fallimento. Volume Primo. Milano: Società Editrice Libraria, 1915.